Frei Luís de Sousa é um marco cultural português. Conhecemos esta obra por integrar o programa lectivo do ensino secundário, ou mesmo pelas inúmeras reedições nos teatros portugueses ao longo dos anos, de que, inevitavelmente, acabámos por ser espectadores. Coube agora a Miguel Loureiro animar este que é um dos “monumentos teatrais do romantismo e mesmo de todo o teatro escrito em Portugal”.
A escolha de encenar esta peça, motivada pelo seu amigo José Luís Ferreira, foi para Miguel Loureiro um “desafio formal de aceder ao que de informal tem o teatro” e uma forma de “continuar a exercitar, uma medida para teatro que sempre foi nossa, que sempre nos serviu, não só na correspondência literária, mas sobretudo no imaginário: o pathos trágico, o eterno retorno, o nevoeiro e a bruma, a herança espiritual, a iconografia e a iconoclastia, o eterno fogo da danação, a frugalidade do belo, vocábulos góticos”. Em nosso entender, conseguiu honrar esta lusa “medida”.
A narrativa todos conhecemos, pelo menos vagamente. Sete anos após a morte de D. João de Portugal, tido como tombado na batalha de Alcácer Quibir (batalha onde desapareceu também o Rei D. Sebastião), a sua mulher D. Madalena de Vilhena desposa D. Manuel de Sousa Coutinho, após um luto digno e buscas incessantes por qualquer vestígio do corpo do seu marido.
Com D. Manuel, D. Madalena forma um lar virtuoso e feliz e tem uma filha, Maria, uma jovem alegre e pura. A harmonia deste lar só é perturbada pelos esporádicos pressentimentos negativos de Maria e por Telmo, o velho aio, que continua à espera do regresso a Almada do seu senhor. A dada altura, aparece um romeiro provindo de Jerusalém, identificando-se como “Ninguém”, com a nova que D. João não pereceu na fatídica batalha e continua vivo algures, contrariamente a todos os indícios, algo que torna ilegítimo o matrimónio entre D. Manuel e D. Madalena, e consequentemente desonra a inocente Maria, por ser resultado de uma relação de adultério.
O desfecho, que não revelaremos, é trágico e o crescendo dramático, sempre sóbrio, culmina numa catástrofe de índole psicológica e ideológica.
Na célebre Memória ao Conservatório Real que acompanha a peça, Almeida Garrett critica o modo como, na sua época, se pretende fazer o drama, com um excesso de violência e de imoralidade, e alega ter desejado “excitar fortemente o terror e a piedade”, usando de contenção e simplicidade. O mesmo se pode dizer do entretimento que consumimos hoje em dia, muito dele estrangeiro, pelo que esta peça assume mais uma vez um papel preponderante.
Almeida Garrett caracteriza Frei Luís de Sousa como sendo “uma verdadeira tragédia. Para além dos elementos estruturais e textuais, reconhecemos nela a consciência, por parte do autor, da tragédia da Nação no seu tempo e a sua tragédia mais pessoal, com a sociedade de então a rejeitar a sua filha ilegítima, fruto da relação com Adelaide Pastor.
Consequentemente sempre foi uma peça difícil, quer para os contemporâneos de Garrett, habituados aos dramas ordinários e desprovidos de originalidade, que serviam somente como distracção e para prender a atenção do público, perpetuando a sua estupidez, quer para o público de agora, pelos mesmos motivos, com espectadores maioritariamente dessensibilizados ou desordenados, graças aos múltiplos bombardeamentos de entretenimento hiper-estimulante importado que permeia o seu dia-a-dia.
Almeida Garrett queria afastar as realidades supra da cena teatral portuguesa, para que o teatro “modelasse o gosto do público, o instruísse e o conduzisse ao empenho cívico em vez de o alienar dele”, ou como este descreveu na sua na Memória ao Conservatório Real:
“Com uma acção que se passa entre pai, mãe e filha, um frade, um escudeiro velho e um peregrino que apenas entra em duas ou três cenas – tudo gente honesta e temente a Deus – sem um mau para contraste, sem um tirano que se mate ou mate alguém, (…) eu quis ver se era possível excitar fortemente o terror e a piedade – ao cadáver das nossas plateias, gastas, caquécticas pelo uso contínuo de estimulantes violentos, galvanizá-lo com só estes dois metais de lei.”
Na primeira edição, Garrett vestiu a pele do sempre fiel Telmo, papel agora desempenhado Ângelo Torres, que esteve à altura da personagem, com a nota de que o seu ligeiro sotaque obriga a um cuidado acrescido com a dicção.
O restante elenco é composto por Álvaro Correia, Carolina Amaral, Gustavo Salvador Rebelo, João Grosso, Maria Duarte, Rita Rocha, Sílvio Vieira e Tónan Quito, de que destacamos positivamente os papéis desempenhados por João Grosso, como D. João, e Carolina Amaral, como Maria.
Com os seus cenários, André Guedes deu a este clássico um toque de contemporaneidade. Sem excessos, consegue provocar uma dissonância cognitiva com os figurinos mais tradicionais. O guarda-roupa e a caracterização das personagens estavam excelentes, pelo que agradecemos a José António Tenente a sua dedicação a este projecto. A luz e o som elevaram a prestação dos artistas a um patamar superior, pelo que recordamos o desenho de luz de José Álvaro Correia e a restante equipa técnica.
Toda a produção resultou num programa extraordinário e de óptimo gosto. Neste aspecto, a vitória é também devida a José Luís Ferreira, à Antunes Fidalgo Unipessoal, ao TNDM II e a todos os outros que trouxeram à luz esta obra.
Devemos ficar duplamente gratos com o afastamento de Almeida Garrett da vida política em 1841, especialmente pelo facto de se ter dedicado à escrita e tempo inteiro, situação que teve como fruto, passados dois anos, a obra Frei Luís de Sousa. Mais que leitura obrigatória, é uma peça à qual não conseguimos escapar e que acabamos por reconhecer como uma obra prima.
Esta versão é altamente recomendável, uma peça para todas as idades, feitios e disposições, para ver sozinho, em família ou com amigos. Quem não viu, apresse-se.
Em cena até 7 de Abril.
Foto © Filipe Ferreira
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