home Antologia, LITERATURA George Orwell – Jacinta Maria Matos (Edições 70, 2019)

George Orwell – Jacinta Maria Matos (Edições 70, 2019)

Dificilmente teria de se reafirmar que, no nosso país, a biografia é um género desprezado, mal conhecido e menos praticado. Nesse aspecto, Portugal contrasta impecavelmente com a Inglaterra. Terry Eagleton falava, precisamente (e a propósito de Orwell), na «obsessão inglesa pela biografia». Um mal de que estamos isentos, diga-se já. Que à inexistência quase total de espécimes corresponda um desinteresse aparente do público – já deveria merecer reflexão. E, possivelmente, o contraditório. Poderá ser falso que haja falta de apetite por boas biografias – fora do âmbito comparativamente estreito dos estudos biográficos de monarcas, estadistas e outras preciosos mais ou menos ridículos. As poucas biografias que se publicam entre nós, dedicadas a autores ou artistas, parecem gozar de alguma receptividade. Haverá, aqui, pelo contrário, algum preconceito? Decerto que sim, mais os consabidos males da «indústria» do livro (no pior dos sentidos, trata-se de um artesanato pré-industrial, com produto excedente, desperdício e uma desorganização endémica). A isto não será alheio algum excesso de peso do discurso académico em estritíssimo senso, que tendeu, algum tempo, para hipérboles como a morte do autor e outras fantasias de terror. Motivos mais que suficientes para acolher com agrado a publicação de George Orwell – Biografia Intelectual de Um Guerrilheiro Indesejado, de Jacinta Maria Matos (JMM). Que a a autora seja uma académica é circunstância que, desde o início, deve estar bem presente na mente de quem ler este livro. Porque, em vez de constituir um entrave, ou fomentar qualquer tipo de reserva mental, o estatuto profissional de JMM nunca ajeita o discurso a qualquer conveniência, nem impede a escrita de se afirmar de modo desimpedido e emancipado. Muito pelo contrário, o politicamente correcto não afecta, de forma nenhuma, esta autora. A título de exemplo, JMM recusa-se a utilizar as traduções disponíveis de Orwell – «infelizmente, a maioria das traduções deixam muito a desejar» (p.29) –, optando por traduzir, por si própria, os excertos que utiliza. No entanto, em vez de se limitar a sugerir, a deixar no ar a ideia vaga, afirma, com toda a clareza, que as traduções actualmente disponíveis não satisfazem os seus padrões de exigência. Além do raro desassombro implicado nesta atitude, o efeito de unidade é claro, na composição do texto, entre o que pertence a JMM e o que é assinado por Orwell.

O que temos diante de nós é um estudo em que o relato biográfico não sufoca o estudo da obra de Orwell, nem este impede que se descrevam – mesmo que de forma sóbria e concisa – esses acontecimentos que formam os marcos principais da sua vida. Esta é, portanto, uma biografia interpretativa. Ou seja, um estudo que não se queda na fixação dos factos – passo fundamental, mas insuficiente, no cômputo geral –, mas que os lê de forma activa. Calca sobre a nudez dos factos o seu próprio timbre, tomando verdadeiramente para si – como voz autoral – o elemento biografado. O que é o mesmo que dizer que se acumulam camadas de sentido, níveis de significado que fornecem ao texto uma inegável riqueza adicional. Este trabalho é, além disso, o que se pode chamar uma biografia crítica – expressão que, como é óbvio, pouco diz aos hábitos linguísticos de uma realidade cultural em que a biografia se situa no menos que residual. Tome-se como exemplo bem ilustrativo a bibligrafia da obra. Esta não é uma despida relação de títulos, mas um elenco interventivo, ao qual a autora empresta os seus inestimáveis comentários e apreciações – autênticas avaliações, na verdade. O que rapidamente se revela muito mais útil do que uma estéril lista de livros. Porque aquilo que esperamos de uma biografia é que ela seja uma tentativa de objectividade, na plena consciência de que o absoluto rigor analítico nunca pode ser mais do que um horizonte de expectativas. Poderá ser mais ou menos especioso traçar de forma tão vincada a diferença, conforme faz a autora, entre o que seja uma «obra primordialmente biográfica» (p.22), que a autora não quis fazer (e não fez), e este estudo. Talvez a designação biografia crítica, diga-se de novo, resolvesse o alegado imbróglio.

Sobre este livro, é possível ouvir o programa “Última Edição” de Luís Caetano na Antena 2, em que entrevista a responsável das Edições 70.

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O George Orwell de JMM é uma biografia interpretativa, ou mesmo especulativa. Não porque se aventure na tentativa de adivinhar o que não esteja documentado, ou seja passível de confirmação, mas porque cria cenários e possibilidades, promove cambiantes para o que é, no fundo, sempre a reconstrução de um vasto desconhecido: a vida de alguém. Orwell não é, ademais, apresentado como um bloco derradeiro e total; surge-nos composto de múltiplas facetas, sujeito a uma diversidade de interpretações contrastantes – «Há quem leia Homenagem à Catalunha como um primeiro momento da futura desilusão de Orwell com a possibilidade de qualquer revolução, bem expressa, segundo esta linha de opinião, na realidade distópica de A Quinta dos Animais e Mil Novecentos e Oitenta e Quatro.» (p.227) No entanto, essa qualidade, de «visão prismática» (p.265), que a autora partilha com Orwell, abre-se à contradição, à divergência; não está limitada a factos pontuais, em tempos específicos: é, pelo contrário, um estado geral. O retrato do homem e do autor é o culminar de um complexo processo de análise através do qual Orwell cada vez menos consegue parecer-se com um ícone, imagem devota num culto qualquer, para passar a ser um biografado de carne e osso. O que, como é óbvio, implica um quadro verídico, «verrugas e tudo», como no dito proverbial de Cromwell. Mesmo que essas «verrugas» sejam a intolerância de Orwell e a sua invectiva politicamente incorrecta (que hoje seria impensável) contra «todos os bebedores de sumos de fruta, nudistas, maníacos das sandálias, tarados sexuais, Quakers, charlatães naturistas, pacifistas e feministas» (p.138). George Orwell aparece-nos como uma personalidade complexa, dividido entre os preconceitos de classe em que se formou e o desejo de superar essas limitações; tenso entre o snobismo a que nem faltava o sotaque posh e a ansiedade de conhecer e integrar um mundo que lhe estava vedado: o das classes desfavorecidas. Orwell disfarçou-se de membro da working class, mas isso nunca passou exactamente disso: um disfarce. E mesmo os seus trabalhos de estudo das condições das classes mais empobrecidas nunca deixaram de ser uma submersão de que o autor regressava. Tradicional, apreciador de Dickens, devoto do seu rotineiro críquete, dos seus casacos de tweed (ainda que coçados e poucos), da englishness, foi um conhecedor apreciável das vanguardas, de que se aproximou, ainda que muito tangencialmente. Anti-sistema, foi polícia numa das paragens mais remotas do Império Britânico, a então Birmânia – «cinco anos de tédio ao som das cornetas» (p.53). Contraditório, quase indecifrável nas suas opções e na vida privada, reservado mas comprometido com os outros, metido consigo e apaixonado pelas causas universais, Orwell tem sido usado como símbolo, quase como uma moeda de troca, apaziguamento para consciências pesadas, ou, simplesmente, má consciência. Este estudo de Jacinta Maria de Matos alheia-se das mitologias. Nele, a autora não produziu uma hagiografia, mas um estudo sério e abrangente de um dos mais importantes escritores e intelectuais do século passado.

Numa nota marginal, secundária mesmo, lamenta-se que JMM tenha usado o dispensável anglicismo «cópia» (p.85), em vez do legítimo «exemplar», assim como se regista com desagrado alguma flutuação no emprego das aspas e dos itálicos, o que, por vezes, confunde o leitor. Por outro lado, alguns reparos linguísticos da autora parecem-se demasiado com excessos de zelo, ou simples embirrações: é o caso de afirmar que é «muito literal» (p.231) a tradução do título Coming Up for Air como Um Pouco de Ar, Por Favor. Sobretudo quando JMM avança com a alternativa «Vir à Tona de Água», uma proposta que nada acrescenta. Algumas imprecisões e erros deveriam ter sido corrigidos: «convém lembrar de que» (p.199), ou «as proles de Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, essa massa incógnita» (p.251) [«prole», em português, não é «massa incógnita», mas «filhos», «descendência»; o «prole» inglês, seria sempre um estrangeirismo, ou traduzível por «proletários»].

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