No ano da publicação do seu primeiro romance Lincoln in The Bardo (cujo ebook deve bater o recorde de número de vozes presente no mesmo registo, incluindo vedetas de Hollywood), a Antígona aposta em George Saunders e no seu Pastoralia, originalmente publicado em 2000.
Nunca é tarde demais para descobrir este autor, tão amado nos Estados-Cada-Vez-Mais-Desunidos-da-América.
Com uma biografia e um percurso académico bem distante dos seus contemporâneos companheiros de ofício, como o próprio não se cansa de referir, compensa essa ausência de currículo com uma voz literária distintiva.
O uso do registo coloquial confere uma enganadora simplicidade aos seus textos, resultado de um exaustivo trabalho de revisão, em busca das soluções mais desafiantes para o leitor. A este, é sempre reservada a palavra final quanto ao que lê, um convite a retirar do texto o que se lhe aprouver, sem abdicar de um subtexto transversal, que exploraremos adiante.
Com um realismo seco, a espaços cómico e cruel na descrição das personagens, das suas deformidades e insuficiências crónicas, dos pânicos e convulsionadas vidas interiores, Saunders procura estabelecer empatias pouco ortodoxas, prendendo a atenção para a dirigir a uma galeria de ignorados da sociedade.
Este sexteto de histórias foge à banalidade do excesso de análise e sentimentalidade gratuita, apostando no sarcasmo e na ironia como passaportes para uma realidade a espaços absurda e assustadoramente verosímil.
A este propósito, o prefácio de Rogério Casanova, autor da excelente tradução, quase vale por si só a compra do livro, pela análise certeira e altamente citável do estilo e da escrita de Saunders.
A história homónima, conto de abertura do livro, retrata a realidade de um casal de “funcionários” num parque temático decadente, cujo objectivo é recriar a época do Paleolítico.
Durante o dia, estão limitados a esgravatar na terra e grunhir durante o horário de trabalho, simulando algum tipo de actividade (excelente alegoria para tanto do trabalho inútil que (ainda) somos forçados a efectuar).
Janet, consumida com “a vida lá fora”, incapaz de “pensar positivo” (um dos lemas repetidos à exaustão, até ficar esvaziado de sentido), tende a dificultar as rotinas convencionadas do nosso narrador. Este cumpre religiosamente as instruções recebidas, com o cuidado acrescido de acondicionar os frequentes deslizes da companheira.
A avaliação do desempenho de ambos é feita pelos clientes, representantes do mundo exterior àquela realidade separada por uma montra, e pela chefia, na pessoa do execrável Nordstrom.
O patrão começa a pressionar o nosso narrador a denunciar Jane. Com uma linguagem barroca, de tão adornada e repleta de segundos sentidos, Nordstrom comunica via fax com os seus empregados. Vale tudo, desde a chantagem ao racionamento da alimentação (varia entre biscoitos, bolachas e de vez em quando um animal para assar na fogueira).
“Só iremos dispensar cada um de vós uma única vez. Se tanto.” é um exemplo excelente dessa comunicação similar à novilingua, na esteira da pós-verdade hoje tão em voga.
”Em relação aos rumores que possam ter ouvido ultimamente (…) Informamos por este meio que são falsos. São tão falsos que consideramos a hipótese de nem sequer nos darmos ao trabalho de os desmentir. Porque desmenti-los implica admitir que já os ouvimos. O que não é verdade. (…) E no entanto sabemos perfeitamente que se não desmentirmos os rumores que não ouvimos, vocês vão presumir que os rumores são verdadeiros. Mas são tão falsos! ”
Nada de novo, certo?
A estranheza e originalidade é reforçada por uma realidade distópica, aludida em pistas dispersas pelo conto. “Uma manada robótica de umas coisas quaisquer”; “as coisas alimentícias, sendo mecânicas, estão no mesmo sítio de sempre, na outra margem do rio.”
Esta aura de futurismo permite destacar, de modo particularmente brutal, o final da história, em que as emoções e actos mais primitivos acabam por vencer, confirmando, afinal, o narrador no sítio onde pertence.
Em “Winky”, o cenário principal é um daqueles congressos “New Age”, popularizados pelo cinema norte-americano, em que um orador a quem são pagos umas centenas de dólares, convence o público a seguir o caminho do sucesso. O vernáculo característico destes eventos é amplamente utilizado ao longo do texto, como se de linguagem técnica se tratasse, e nós os especialistas na mesma. São liderados por Tom Rodgers, guru motivacional pago para constatar a óbvio, os presentes seguem os seus ensinamentos.
As soluções são abstractas e de fácil realização, para problemas bem concretos, simplificados com lemas à medida de todos os imbecis sem capacidade para cuidarem das suas vidas.
Neil Yanicky é o imbecil de serviço, “baixinho e careca”, atraído pelo mantra “são horas de Eu ganhar”, solução milagrosa para dar a volta por cima e vingar na vida. Com a repetição das “verdades” certas para justificar a mudança, Neil sente-se finalmente capaz de tudo para recuperar a sua “liberdade” e “autonomia”. Encarcerado numa existência limitada aos cuidados de Winky, a “irmã gorda”, “demasiado feia para f****”, carente e beata, sonha com um golpe de sorte cada vez mais improvável.
Uma quimera cujo fracasso implicaria um regresso aos intermináveis monólogos interiores, característica transversal a todos os narradores presentes no livro, com o seu apogeu no confronto mental de solilóquios conflituantes de Morse e Cummings, quando também eles se cruzam por um acaso da vida, no genial derradeiro conto de Pastoralia: “As Cataratas”.
Os narradores principais são todos homens (em “FIRPO”, um adolescente do sexo masculino), conscientes de si ao nível da histeria. Fechados no conforto da sua argumentação interior, tornada sátira e parábola pelo detalhe com que é descrita, constroem uma carapaça face a um Mundo hostil, adversário dos seus caprichos e pretensões deveras irrealistas. As ilusões de interacção com a sociedade da qual se retiram tendem a agravar-se, com um conjunto de práticas e teorias aparentemente irreversíveis, tal o seu grau de profundidade.
Ao mesmo tempo, é evidente o desespero por um boicote dessa falsa ordem, uma nesga de luz capaz de possibilitar a partilha do fardo emocional. Alguém capaz de ler nos seus olhos a narrativa, poupando-lhes assim a árdua tarefa de detalhar uma intimidade tão cuidadosamente urdida e protegida (tarefa abraçada com todo o mérito pelo nosso caro Saunders). Algo semelhante a uma redenção, sempre adiada.
Em “Carvalho do Mar”, título do terceiro conto e nome do bairro social onde as personagens residem, “não há carvalhos nem mar, só uma centena de apartamentos sociais com vista traseira para os correios”. Saunders traça aqui um retrato dos norte-americanos tidos como responsáveis pela eleição do actual presidente Trump.
O narrador ganha a vida como stripper no Joysticks, restaurante e bar de striptease masculino. Sozinho sustenta toda a família: Min (irmã), Jade (prima), os respectivos filhos bebés e a sua Tia Bernie, eterna optimista, a quem uma vida de constante provação não apagou a alegria, desligada da realidade de forma perigosamente similar a distúrbio psiquiátrico.
Min e Jade são desempregadas por opção e convicção. Não acabaram o liceu, mas estão a tentar passar nos exames. Passam os dias em casa. Amamentam os filhos e nos intervalos enterram-se em comida e TV de plástico, com as inevitáveis consequências para o seu intelecto. “A Jade diz que «regicídio» é um vírus. A Min identifica o Biafra como o planeta a seguir a Saturno. Eu ofereço-me para ajudar e elas desatam a gritar comigo por ser paternalista (…) Debatem quantos lados tem um triângulo. Concordam que Churchill era uma ópera.” “Como o Meu Filho Morreu de Morte Violenta” e “O Pior que Pode Acontecer” são os programas preferidos. Trocam os piores impropérios perante o menor desentendimento e pouco se ralam com o resto.
A Tia Bernie morre inesperadamente e reaparece ressuscitada, em decomposição, capacitada da ausência do Além e da necessidade premente de injectar nos inúteis da família o gene da ambição capitalista, base para uma vida despreocupada. Do outro lado não há nada. Deste vale tudo, inclusive arrancar olhos, se tal significar obter dividendos rápidos.
Nas histórias finais “O Fim de FIRPO neste mundo”, “A Infelicidade do Barbeiro” e “Cataratas”, o registo altera-se. Mantendo o foco no egocentrismo endémico dos narradores párias voluntários, há uma inesperada viragem para o exterior.
Em “O Fim de FIRPO neste mundo” e “Cataratas”, é espoletado por um acontecimento fortuito e a consequente reacção inesperada dos protagonistas, forçados a contrariar a sua natureza e a assumir actos redentores em instantes decisivos.
“A Infelicidade do Barbeiro” apresenta-nos um “homem de meia idade, barrigudo e com nariz de papagaio” e sem dedos nos pés. Ainda em casa da mãe, acidentalmente barbeiro de profissão, é incapaz de manter uma relação com o sexo oposto para além de “galar todas as mulheres que passavam” ou da detalhada fantasia porno-erótica, invariavelmente concluída “enquanto esgalhava umas sentado num banquinho dentro da dispensa da mãe”.
Perante a possibilidade de um ombro onde descansar as mágoas e encontrar o Amor, a desconfiança e as dificuldades parecem intransponíveis. “O barbeiro olhou novamente para a rapariga bonita. Ela sorriu. O coração dele começou a bater mais depressa. Isto nunca aconteceria. Elas nunca sorriem.”
Aos poucos, a confiança regressa, mas a decisão vital tarda em surgir e o risco de nunca se concretizar é penosamente real.
https://www.youtube.com/watch?v=PQae42N1WWM
Escrito há quase dezassete anos, Pastoralia soa bem deslocado do contexto da sua publicação. Culturalmente reinava o consagrado Beleza Americana e outros congéneres, onde a ironia sobranceira submetia a empatia com os desvalidos e esquecidos da sociedade. Os proscritos são elevados a protagonistas, os “zés-ninguém” fitados com desdém por todos, com a superioridade de quem se sabe igualmente vulnerável e mascara de arrogância o temor de um passo em falso, que precipite o estigma incapacitante do fracasso, numa sociedade movida a sucesso, exibido como medalha no campo de batalha da vida. Cada ser é uma construção contínua, una e irrepetível, incompleta e omissa por definição inerente da sua condição, assim condenada desde a concepção.
George Saunders foi e é um dos protagonistas do resgate da modorra irónica, egocêntrica e estilisticamente centrada, comum a muita da literatura de finais séc. XX/inícios séc. XXI, devolvendo-lhe o papel de mediação entre o leitor e o Mundo. Fugindo ao moralismo bacoco, opta pelo uso do estilo ao serviço da revelação e da auto-descoberta. Como o próprio confessou em entrevista aquando do lançamento de Pastoralia: “Quando vais à praia, independentemente do tempo que faça, sentes mais intensamente os elementos se tirares a t-shirt e ficares de tronco nu. Estás mais exposto. No dia-a-dia, uso três ou quatro camadas de roupa. Para mim, a boa escrita faz-te tirar a t-shirt quando a lês. Para escreveres e agires adequadamente, tens que estar sobre-exposto.” Algo como um ridendo castigat mores pós-modernista, com prevalência para o ridendo e um castigat mores bem diferido.
O púlpito, tomado tantas vezes pelo escritor, torna-se aqui irrelevante e até incómodo. Não há mensagem oculta no texto, apenas o resultado de um aturado trabalho de edição, a escolha da mot juste. Para disfarces, os múltiplos adoptados a cada dia são-nos já suficientes.
Saunders relembra-nos a diversão da literatura, sem descurar a precisão e a inteligência na construção das personagens. Hoje, como outrora, a literatura vive do confronto de opostos, do desafio das barreiras erguidas, mesmo quando auto-infligidas. Nem sempre há superação no final, mas também da luta se alimenta a fugaz felicidade, mesmo quando concentrada na leitura de um grande livro sobre as pequenas infelicidades alheias.
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