Gostava de estar viva para vê-los sofrer! está em cena até dia 14 no Teatro do Bairro, em Lisboa, e é da autoria de Max Aub, novelista, poeta e crítico, de naturalidade francesa e pais alemães, de nacionalidade espanhola e, posteriormente, por exílio e por opção, mexicana. A heterogeneidade da sua própria definição e a complexidade do período em que viveu reflete-se na densidade do seu trabalho. Escreveu esta obra entre guerras, a Civil Espanhola e a Segunda Mundial, em 1939. O cenário era negro, de uma esperança que ardia fina como pavio de vela.
E é exatamente assim que se impõe o palco para este espetáculo: sujo, escuro, desfeito e bombardeado pela dureza da vida. Emma Blumennthal, interpretada por Ana Bustorff, apresenta-se deitada para, ao longo de todo o primeiro ato, se ir erguendo a custo, em perfeita analogia com a história que narra, auxiliada apenas por memórias de tempos mais leves.
O espírito da personagem chega-nos sombrio, através de sons reminiscentes no pensamento de Emma, audíveis ao público. Pelos meandros do nada da sua casa, imergida numa atroz solidão desencontrada, Emma recorda um filho perdido e o marido assassinado. Alucinada, gelada de tristeza, ela é testemunha de que o poder da mente pode ser a última opção para se salvar.
Bustorff já nos habitou a uma especial e natural força de transformação que invade os écrãs, a uma energia reboliça que pisa sonora nos palcos. A voz é categoricamente pujante, é quente. Com uma energia intensa, por vezes em surdina… e repleta de estórias na pele, esta é a Ana.
A arte da representação precisa da vida para poder existir, mas se as nossas realidades forem beber àquilo que nos dá a representação, conseguimos reaprender-nos, quando nos olhamos de fora: estava lançado o mote para a nossa conversa.
Ana Bustorff – Esse conceito é brutal, está tudo dito. Eu gosto muito do que faço, é-me vital, as personagens fazem-me crescer com elas e eu também as levo comigo, há uma simbiose quase perfeita. Trabalhar com encenadores muito diversos , com propostas muito diferentes faz-nos estar sempre a aprender, não há idade, a troca de prazer, de emoções é sempre espantosa.
“Gostava de estar viva para vê-los sofrer” está agora na capital, depois da exibição em Braga, no Theatro do Circo. Ana é natural do Porto, voltar a Braga podia significar estar em casa… e sim, numa das “casas”.
Ana Bustorff – Há várias casas, a nossa casa é construirmo-nos com o palco, é todo o trabalho que fazemos naquele espaço que para mim é sagrado. É a minha casa temporária, enquanto esta personagem Emma existir, habito e coabito aquele espaço, e é assim que consigo chegar onde pretendo, e passar às pessoas a verdade. E essa verdade não se representa, a dor existe, a alegria existe, a vida existe, mas nada disso se representa. Em muitos projetos ao longo dos anos, houve momentos em que achei que já não era atriz, que já não conseguia, a entrega podia estar a ser mais difícil…. a dúvida!, mas isso obriga-me a não parar, a não estabilizar. O regresso à casa, neste caso, ao Theatro Circo – um dos espaços mais bonitos que temos e que tem uma pulsão interior e uma emotividade muito grande – é sempre um enorme prazer, que me traz memórias antigas, e que me ajuda a prosseguir. Mas é temporário. Nasci no Porto, mas a minha cidade é Lisboa, que sempre adorei e visitei desde pequenina, é a origem da minha família paterna.
Max Aub é também um regresso para Ana, que já havia interpretado a obra-prima “Crimes Exemplares”. O convite para este novo texto “tão atual, tão difícil, tão bonito, e tão visceral” – palavras da atriz – veio do encenador Ignacio García, com quem também se reencontrou.
Pedi à Ana para ler uma citação da atual sinopse, feita pelo próprio encenador: “Apesar do sofrimento, aquela mulher torturada pela vida e pela história decide ir em frente, viver, lutar e, acima de tudo, recordar, porque como diz: se não houver memória, para que se vive? Isto explica claramente a nossa proposta: romper as fronteiras do silêncio e do esquecimento.” Perguntei, quanto da Ana está aqui? Como se constrói a personagem, como se desliga o que não interessa?
Ana Bustorff – Está 100%. Constrói-se trabalhando muito, e com a ajuda do encenador perceber o que interessa em determinado momento e o que não faz parte da leitura do personagem. É um trabalho em conjunto. Constrói-se a personagem a ensaiar, a sonhar, a pensar nela, galgando, e percebendo que ela tem que existir em mim, é ela que me leva pela mão, e eu também a levo comigo. Há, contudo, um momento no processo criativo em que temos a sensação que não é nada daquilo, uma espécie de desespero e, de repente, como que uma epifania, há qualquer coisa mágica que nos faz chegar lá. Muito embora seja um solo, um monólogo, estou sempre acompanhada, pela equipa, pelas minhas memórias, pelos meus medos, e pelos meus sofrimentos. (Ana brilha a sorrir).
Nesta peça vemos igualmente a representação de um mundo transformado pela guerra, assiste-se a uma obrigatória metamorfose de identidade, à personificação do medo. A personagem questiona exatamente se alguma vez a realidade voltará a ser a mesma. De bitola e contextos diferentes, seria de esperar a equiparação aos tempos pandémicos atuais.
Ana Bustorff – Eu sou um bocado negativa, eu acho que as coisas nunca mais vão voltar a ser como foram, já não são há muito tempo.
A entrevista decorreu no teatro, a plateia estava ainda vazia, e a equipa técnica terminava o ajuste do cenário para a sessão da noite. Ana Bustorff ultrapassa já as quatro décadas de experiência no métier das artes cénicas e audiovisuais, ainda assim, a poucas horas de uma estreia, sente “muitos nervos” e “muito medo”.
Ana Bustorff – Não se trata o nervosismo por “tu”, às vezes ele come-nos! Tento encontrar um equilíbrio com a respiração para não me deixar ser engolida por esse medo, que é tão incapacitante. Por vezes não é fácil, e o facto de fazer palco há tanto tempo pode até piorar a situação, as pessoas podem esperar de nós o que não temos para dar , ou pode não ser a altura certa para o dar, resultando então numa sensação de responsabilidade muito grande.
Quanto a projetos de futuro, eles existem para Ana, há mais teatro à espera. No entanto, e sendo ainda cedo para qualquer revelação, será o cinema a ter o fortúnio da participação da atriz.
Texto: Max Aub