home Didascálias, TEATRO Guião para um país possível – Antevisão

Guião para um país possível – Antevisão

Estreia amanhã a peça Guião para um país possível, novo projecto do colectivo Cassandra, fundado por Sara Barros Leitão após receber o Prémio Revelação Ageas/Teatro Nacional D. Maria II. O convite amável para assistir ao primeiro ensaio corrido da peça levou-me à casa nova que fizeram sua. Depois da oferta de café e chá, tempo para olhar em volta. Tectos altos e paredes despidas, cadeiras reduzidas ao esqueleto cobriam o chão e em volta desenhos dos lenços dos namorados, que compunham a exposição “Lenços de Amor”. A Sara recebe-nos com uma breve introdução ao que se segue e deixa à cenógrafa a apresentação do cenário ao longo da récita, resolvendo o mistério das múltiplas cadeiras, destinadas a servir de fundo à representação. A propósito dos 50 anos do 25 de Abril, que se festejam em 2024, e a partir de uma ideia surgida do João Mineiro, que reparou na existência dos secretários da Assembleia da República e vem estudando os Diários da Assembleia da República nos seus trabalhos e estudos, a Sara pensou que essa vasta documentação e essas personagens seriam um bom ponto de partida para uma cronografia invertida da nossa democracia, passando por personagens, eventos e votações marcantes destas décadas, para um balanço do caminho percorrido e uma projecção do que poderá avizinhar-se.
Os actores preparavam-se no cenário ainda despido e sem figurinos definitivos, e em pouco tempo começaram. As escolhas não poderiam ter sido melhores. Margarida Carvalho e João Melo são experimentados e versáteis, habitués do palco do Teatro Nacional São João e tantos outros já partilhados. Os seus corpos facilmente carregam as cenas também nos instantes em que as palavras não chegam, garantindo uma base sólida a todo o espectáculo. É aliás nos momentos em que reina o silêncio dos olhares trocados e gestos simbólicos que a peça ganha uma dimensão mais intemporal e surgem os trechos que lembramos (e muitos lembrarão certamente) depois de “cair o pano”. São poucos nesta peça bem verborreica, mas fazem toda a diferença, para além de políticas e cronologias, oferecendo um vislumbre poético do que nos une ao invés do divisivo contingente.
A cronologia é invertida, ao começar em 2023, para passar, entre outras cenas, pela infame “geringonça” de 2015, baptizada por Paulo Portas – com o célebre debate entre dois despeitados e ilustres (à época) recém-empossados deputados do PSD – Pedro Passos Coelho e Luís Montenegro – e o hoje recém-demissionário Primeiro Ministro António Costa, entalados entre tiradas desdenhosas e iradas e os sempre procedimentais e dramáticos “pedidos de defesa da honra” e “interpelações à mesa” – para desembocar no final da Assembleia Constituinte, de que resultou a ainda vigente e sempre tão polémica Constituição da República Portuguesa de 1976, garante dos princípios, direitos e deveres desta democracia em que vivemos.
Entretanto, um desfile de notáveis: Natália Correia, Odete Santos, Francisco Sá Carneiro, Cicciolina, entre outros também anónimos, escolhidos a dedo para esta reconstituição possível de quem somos e como chegamos a este estado de coisas, entre risos e dramas, com o peso da papelada e dos rituais (como as intermináveis votações nominais, aqui habilmente reconstituídas com o nome de todos os deputados a passar em fundo) sobre vocábulos e gestos, como se a vida fora daquelas quatro paredes imaginárias se suspendesse entre os anúncios do início e do final de cada sessão parlamentar. Um retrato trágico-cómico da “casa de democracia” no que tem de seu e nosso. Um excelente desbloqueador de conversa, fruto de aturada pesquisa e inteligente organização de tempos e espaços de uma equipa unida e motivada a dar o seu melhor, com aquele brilho nos olhos que nos faz acreditar no que os move.
O espectáculo estreia-se já amanhã (dia 7 de Dezembro) no Teatro Municipal Sá de Miranda em Viana do Castelo, onde se mantém até dia 10 de Dezembro e promete visibilidade no âmbito das celebrações do aniversário redondo da Revolução dos Cravos, com uma digressão que se espera longa e auspiciosa por vários teatros do País.
A não perder.

Todas as informações sobre a peça AQUI e na página Instagram da estrutura Cassandra

Foto de capa © Teresa Pacheco Miranda

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