Guido Tonelli, professor e físico de partículas, conseguiu dois milagres com Génesis – A História do Universo em Sete Dias: falar dos mais complexos conceitos científicos de forma interessante e tornar esses conceitos acessíveis ao comum dos mortais. Juntando-lhe referências culturais (desde a literatura, a arte, o cinema e a mitologia) e uma linguagem concisa e objectiva, O italiano cria-nos a ilusão de compreendermos as bases da investigação científica na área das origens da existência, e ao mesmo tempo, a vontade de pesquisar mais sobre estas que são, agora e sempre, as questões essenciais: de onde vimos e para onde vamos. Esta conversa generosa e simpática é apenas o ponto de partida para a descoberta deste livro revelador e pedagógico.
Revista INTRO (RI): O seu livro é fascinante pelo equilíbrio que consegue entre a divulgação científica e a acessibilidade dos conceitos.
Guido Tonelli (GT): Falando com toda a franqueza, sendo cientista, a maior parte dos livros dessa área que leio têm muito conteúdo mas não são atractivos. Os conceitos científicos são muito belos, mas é necessário encontrar a forma mais adequada para os divulgar, torná-los em algo de que todos possam desfrutar, incluindo as pessoas que não tenham qualquer noção de ciência.
RI: A abordagem torna-se imagética e quase literária, ao utilizar a mitologia e a cultura.
GT: De certo modo, este sou eu. Sou cientista mas o meu cérebro não está dividido em capítulos. É impossível separar a emoção de descobrir uma nova partícula daquela diante de uma peça de arte. A decisão de usar esta linguagem, com referências a velhos mitos, filmes, obras de arte ou livros, foi para melhor transmitir a mensagem. Algumas partes do livro são difíceis, mas não tenham medo. Eu levo-vos até ao final, diz num sorriso.
RI: São conceitos essenciais, é impossível contorná-los.
GT: Continuo a receber emails, dezenas, de leitores que me agradecem por terem descoberto que conseguem compreender matérias que consideravam impossíveis. E surpreendentemente dizem que a sua vida mudou, porque alterou a sua percepção. Assim que se apercebem dos problemas ligados à origem do universo e deles próprios, tudo é encarado de forma diferente. A dimensão altera-se. Vivemos um período desafiante mas não é o primeiro que a Humanidade enfrentou. De certo modo, nestes meses redescobrimos que ter uma perspectiva mais abrangente Da história do mundo material, dá-nos mais força, mesmo para sobreviver a um período mais difícil e olhar para o futuro.
RI: Conhecimento é poder. Dá-nos segurança.
GT: Eu chamo-lhe uma arma mortífera. Os nossos antepassados desenvolveram a imaginação. O primeiro(a) a fazê-lo foi visto como maluco(a), não por ter um cérebro diferente dos demais mas por imaginar coisas antes do seu tempo. Essa possibilidade de resolver situações deu-nos uma ferramenta de sobrevivência adicional, de encarar dificuldades, perigos e momentos terríveis com algo interior que lhes dá força e resiliência adicional.
RI: Um aspecto interessante da sua área científica (e de outras) que relata no seu livro, foi o facto de as descobertas essenciais terem sido primeiramente fruto da imaginação, devido à inexistência de instrumentos capazes de comprovar cientificamente essas conjecturas. É paradigmático o caso da relatividade geral, em que Einstein criou uma teoria basilar quer à astrofísica quer à física nuclear que, apesar de matematicamente fundamentada, era impossível de comprovar pela observação directa.
GT: Na história destes cientistas encontramos em comum o medo do que tinham imaginado. Era uma ilusão que era necessária e depois comprovada matematicamente, gerando uma conclusão. Mas a conclusão era por vezes demasiado surpreendente, até para os próprios, alguns dos mais imaginativos de sempre, porque era tão desligada da realidade quotidiana que se tornava difícil processar o que acabavam de formular. Foi algo que se repetiu na história, mas imaginar Demócrito, que num nível conceptual imaginou os átomos, para mim é uma lição incrível. A conclusão da visão atomista do Mundo veio do preconceito. Os gregos odiavam o zero e o infinito, que não eram números. O conceito de algo sem limite era-lhes abominável. Aceite isto, concluíram que não poderiam dividir a matéria ad libitum, tinha que haver um limite. Chega-se a uma conclusão que foi comprovada apenas 2000 anos mais tarde meramente através da imaginação e da especulação.
RI: É sempre o começo do método científico.
GT: Na 2ª parte do livro há um conjunto de conceitos que ainda hoje não conseguimos compreender, e contornamos a matéria negra, a energia negra ou o mecanismo de inflacção, em que ainda somos extremamente ignorantes. Mas algures, uma jovem mente está a imaginar uma solução. Inicialmente, ninguém vai acreditar nele.
RI: Uma situação paradigmática, que refere no seu livro, foi o desenvolvimento que Lemaître fez da teoria da relatividade geral de Einstein [que defendia, muito resumidamente “um universo homogéneo, estático e espacialmente curvo” (p.35)], e chegou à conclusão oposta, de que o universo se expandia. Durante anos, Einstein recusou aceitar essas conclusões.
GT: É verdade, atacou-o publicamente. Não encontrava qualquer erro no estudo, mas não conseguia aceitar a conclusão.
RI: É um problema que se repete ao longo da História. A dificuldade do status quo em aceitar a mudança, o que se torna algo assustador. Sendo a ciência a área de conhecimento que em teoria teria maior abertura à novidade, como se explica este atrito constante entre pares? Ainda há espaço para a imaginação na ciência actual?
GT: Como cientistas somos treinados desde cedo a não recear novos conceitos e assumir riscos, seja no pensamento, na imaginação, na criação de novos detectores, novos telescópios… Quem procura apenas sucesso nunca será um verdadeiro cientista. O nosso trabalho é arriscado e para quem quer ter a certeza do resultado, a ciência não será a escolha certa para o futuro. Quando há 100 pessoas que tentam chegar ao cume da montanha, sabemos à partida que 99 fracassarão. Ou até os 100. O fracasso e o erro são a nossa sombra, a nossa vida. No entanto somos conservadores. Agressivos por definição (porque somos seleccionados), mas não suficientemente abertos à inovação, sempre que surge uma teoria revolucionária as divisões são profundas e imediatas.
RI: Para além da mitologia, utiliza o Génesis como base para o livro, um conceito religioso. Coincidência ou propositado? E divide o livro em sete partes, como os dias da criação no Velho Testamento.
GT: Foi intencional. O livro das origens é o Génesis, com o G maiúsculo. O plano era descobrir as principais transformações que geraram o Universo actual e a determinada altura percebi que eram sete. Acabou por ser uma escolha natural usar a mesma estrutura do Génesis bíblico, porque também ajuda na memorização. Apenas alterei a duração dos “dias”, que podem variar entre biliões de anos e 10-35 segundos.
RI: Mas acaba por ser uma decisão provocatória.
GT: Sim, mas discuti com alguns amigos arcebispos, teólogos, e até recentemente, com o bispo de Milão (Monsenhor Borgonovo) que se mostraram, não apenas abertos à mudança, mas contentes com o debate de ideias. Para eles, a existência de Deus está para além da Natureza, logo essa fé numa entidade superior invalida que qualquer ferramenta científica possa confirmar ou negar a sua existência. Por isso, há respeito mútuo e a procura de território comum para a discussão.
RI: Longe vão os tempos de Galileu…
GT: Felizmente (risos). Já não vou arder na estaca no Campo de´ Fiore como o Giordano Bruno. Adoro lá ir comer qualquer coisa, desfrutar de um gelado. Nesta praça em Roma, onde os hereges eram outrora queimados, hoje repleta de jovens a passear, restaurantes e bares, encontra-se a estátua de Giordano Bruno [esculpida pelo Grão-Mestre do Grande Oriente de Itália, erigida e financiada pelos maçons romanos, inaugurada a 9 de Junho de 1889, em homenagem à sua morte (e de tantos como ele) na fogueira por heresia a 17 de Fevereiro de 1600, o que à época foi tido pelo Papa como um insulto], daí a referência.
RI: O surgimento da pandemia suspendeu o trabalho no CERN [Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear]?
GT: Afortunadamente não. Sou professor em Pisa e faço pesquisa no CERN e consegui continuar em trabalho remoto. Conseguimos salvaguardar o acelerador de partículas num estado similar à hibernação por uns meses e continuamos o trabalho através das plataformas de comunicação, que nos permitem analisar dados e até fazer projectos e palestras. Perdemos uma semana, surpreendidos pela dimensão do confinamento. Mas os alunos parecem ter-se adaptado bem, apesar de o ensino presencial se manter insubstituível. A maior disponibilidade generalizada de tempo também ajudou a consolidar conhecimentos.
RI: Abordando agora o âmago do seu trabalho de investigação. Depois da descoberta do Bosão de Higgs, qual é o próximo passo? Quando se faz uma descoberta desta dimensão e relevância, o que se faz a seguir? (Risos)
GT: O Bosão de Higgs é ciência e agora discutimos sonhos. Oito anos depois, continua a ser uma descoberta fundamental e a sua importância é ainda maior. Retrospectivamente, ainda não compreendemos na íntegra onde nos poderá conduzir esta nova partícula, porque as conexões com outras áreas vão-se multiplicando: com a cosmologia, com a inflacção [conceito científico desenvolvido no livro, não o conceito económico], com a matéria negra, possíveis implicações com a energia negra… Parece ser uma nova ferramenta para descobertas adicionais.
RI: O problema agora, pelo que entendemos do livro, é a gravidade.
GT: É a questão de um milhão de dólares. E aí há centenas de teorias a serem testadas, como a super simetria, a super gravidade, os loops, a teoria das cordas, teoria do cérebro, que poderão unificar a gravidade de certo modo. Mas não sabemos qual delas prevalecerá ou sequer se precisamos de uma nova. Ou várias combinadas, uma resolvendo um problema, outra resolvendo outro. Uma teoria única é improvável. A informação de temos obtido da física de partículas e da física de astro-partículas, incluindo as ondas gravitacionais, ou seja tanto no campo macro como no campo micro, era anteriormente inacessível. Estamos a considerar um novo acelerador mais poderoso para as micro-partículas e no extremo oposto, o que tem sucedido com os observatórios de ondas gravitacionais ou astronomia multi-mensagem, tem permitido obter informação sobre fenómenos totalmente inacessíveis há pouco tempo atrás. Por exemplo, nos buracos negros não sabemos como funciona a gravidade.
RI: Há uma série de mitos que lhe estão associados.
GT: É verdade. Os buracos são inacessíveis individualmente, mas se interage com qualquer outra matéria (outro buraco negro, uma estrela de neutrões) é possível obter informação: matéria e energia anteriormente presa no buraco negro, através das ondas gravitacionais. O estudo destes milhões de buracos negros, hoje possível, alterará a nossa visão da gravidade. É o que espero. Ninguém sabe o que sucede com a gravidade em dimensões microscópicas. Talvez um dia se descubram gravitões [matéria mantida coesa pela gravidade] e a sua produção, ou até de um buraco negro alterará totalmente a teoria da gravidade. Porque os gravitões não podem ter massa.
RI: Interessante é também o peso destas descobertas no conceito de tempo e espaço, especialmente o tempo tal como o conhecemos que, para muitos colegas seus, não passa de uma ficção criada por máquinas para dar alguma narrativa e organização à vida humana.
GT: Há teorias que consideram o tempo fixo e a existência em movimento e não o inverso. Não é o tempo que flui mas nós através dele. É verdade que por vezes o futuro altera o passado. Imagine que estamos em Alexandria, no Egipto, há 2300 anos atrás. Na biblioteca está a obra de um célebre filósofo, que começou a geometria, de seu nome Euclides. Ninguém sabe o que ele está a fazer. Trabalha sobre assuntos abstractos. Ninguém imaginaria que tanto tempo depois continuaria a discussão sobre se o espaço-tempo é euclidiano ou não. Hoje estamos a considerar pensadores e filósofos que passavam despercebidos no seu tempo.
RI: O tempo, principalmente o chamado tempo psicológico ou tempo percepcionado individualmente, assume grande importância também neste período de confinamento, devido à pandemia.
GT: O ritmo alterou-se completamente. Sobre esse tema tenho uma história interessante. Um colega em Aquila contou-me que os relatos sobre a duração dos terramotos eram todos diferentes, com 10 a 15 segundos de abalo sísmico sentidos como 20 minutos ou dez ou um período interminável, o que prova também a importância das emoções nesta percepção do tempo.
RI: Uma percepção narrativa da realidade talvez.
GT: Com certeza. Dependendo do nosso estado emocional, em determinado espaço e momento. Os fisiólogos têm várias experiências nesse sentido. Por exemplo, uma experiência em que se pretendia estudar a reacção à espera. Sem qualquer relógio ou telemóvel, depois de esperarem 20 a 30 minutos, era perguntado quanto tempo tinham aguardado. De acordo com o ânimo de cada um, as respostas variavam entre 1 e até duas horas para quem estava mais desanimado ou 10 a 15 minutos para os que estavam mais alegres ou tranquilos.
Mais livros AQUI