Se Hamlet encenado por Luís Miguel Cintra no derradeiro correr do pano no Teatro da Cornucópia, com tradução de Sophia de Mello Breyner, fechava um ciclo no panorama histórico do teatro português e da representação de William Shakespeare há alguns anos atrás, este Hamlet, com encenação de Luís Moreira, vem dar fulgor a uma nova geração na representação, desta feita no Teatro do Bairro, segundo as próprias palavras do encenador numa versão «Hamlet unplugged». Os cenários não nos deixam mentir: não fossem os tapetes suspensos no ar, cobrindo as tábuas, os efeitos de luz e sombra, a sonoplastia minimalista, as flores de Ofélia boiarem no nosso imaginário, tudo é em imagem e ambiência semelhante a uma recriação “MTVescaacústica”, ainda assim electrizante ou antes aterrorizante, não se tratasse esta da primeira tragédia do conjunto de três a apresentar pelo grupo Filho do Meio, com apoio da Fundação Calouste Gulbenkian e GDA.
Tudo começa com um casamento e um funeral fantasmagórico: Hamlet, o filho destroçado vê a sua própria mãe cair no incesto com o seu tio, irmão do seu recém-falecido pai. Como tragédia que é, e nas palavras de Luís Moreira, a estrutura é muito diferente da comédia, ainda que, a espaços, haja verdadeiros momentos de riso puro e duro, sobretudo com o bobo da corte, no confronto imenso entre o novo Rei ilegítimo da Dinamarca e a sua tenebrosa sombra. Hamlet é provavelmente a melhor tragédia de Shakespeare, sendo um desafio à maturidade de um encenador e, para acarinhar o público, é preciso revelar-lhe o dom da palavra shakespeariana, de forma sedosa, vulnerável, e mostrar as suas vísceras em palco. No entanto, diz-nos o encenador de apenas 31 (trinta e um) anos que tal desafio se revela por vezes confrangedor, já que tal tragédia é, por norma, um repto profissional que surge tardiamente na carreira de um encenador.
A companhia teatral Filho do Meio, a cargo deste Hamlet sui generis, confere grande liberdade a todos os componentes da produção, desde os cenários, aos figurinos, às coreografias, etc. Para além disso, a actualidade e conteúdo do texto são prementes, um espírito do tempo que se transporta ao presente e até mesmo ao devir, em anacronismo a espaços. É um prazer ouvir a tradução de Fernando Villas-Boas. Não é Shakespeare intrincado, desfasado, é Shakespeare para todos, algo em que os actores também são exímios na sua prestação. Destaque-se, nomeadamente as prestações da Rainha, do Rei e do Bobo da Corte. Hamlet, no seu processo de individuação, (sim porque esta é uma peça sobre a individuação “sem saída” de um personagem que “de génio e louco” tem mesmo “um pouco”), convida-nos à reflexão sobre os complexos, desde inferioridade, superioridade, materno ou paterno, passando pelo enfrentamento da sombra em ricochete e multidimensional dos vários personagens, particularmente a tríade Rei-Mãe-Hamlet. Este clássico leva-nos por excelência para a profundidade, para uma tentativa de conquista de “ilhas” de maior consciência, mas que são abortadas pela extrema tragédia que se abate em Elsinore sobre aquela família e restantes intervenientes. Traz-nos a necessidade de ponderação, o redimensionamento da loucura e a necessidade de ver que ninguém está inocente, a começar por nós próprios. Se tudo é silêncio, naquela “Pietá” de pilha de corpos onírica, sem sangue, mas com pó, com que somos presenteados no final, certamente seremos obrigados a ficar acordados para sempre…