A curiosidade face à correspondência de intelectuais altamente reputados é, por norma, mais aguçada quando há dados biográficos suspeitos ou polémicos, que possam assim ser mais devidamente escrutinados. Nestas Cartas e Outros Documentos 1925-1975 de Hannah Arendt e Martin Heidegger, com publicação em Portugal pela Guerra e Paz, em adaptação da tradução brasileira, supõe-se inevitável a questão sobre como foi possível a alemã de origem judaica manter contacto com o mentor e amante, mesmo após a sua entusiástica colaboração com o regime nacional-socialista. Convém sublinhar que esta aproximação não se baseou numa mera simpatia ideológica, e que Heidegger já era Heidegger à época. Ser e Tempo (Sein und Zeit), a sua obra maior, é publicada em 1927, portanto, quando este se torna reitor da Universidade de Freiburg em abril de 1933, em pleno processo de sincronização de todas as instituições públicas alemãs para pôr em marcha a “revolução nacional-socialista”, fá-lo com o vigor e a crença numa nova universidade alemã, com toda a conotação que este adjetivo implicava no ideário hitleriano. Uns dias depois da nomeação, inscrever-se-á como membro do partido, e assim permanecerá até 1945, embora abandone a reitoria logo em 1934, por pressão de colegas. Entretanto, Hannah Arendt já havia abandonado o país, negando-se desde o princípio a crer em qualquer tipo de vantagem na aceitação do monopólio nazi da vida pública alemã, e, assim, terminando o contacto com Martin Heidegger, retomado apenas na década de 50, quando já é cidadã americana.
Estas Cartas não descortinam muita informação biográfica de qualquer um dos dois relacionada com aquela questão. No entanto, a separação forçada pelas circunstâncias políticas determina a própria organização da correspondência em três partes: “O olhar”, com os documentos referentes à fase inicial da relação secreta entre os dois até à ascensão do nazismo (1925-1933); “O reencontro do olhar”, correspondente ao regresso do contacto entre os dois (1950-cerca de 1955); e “O outono”, que inclui a correspondência na fase final da vida de ambos (1965-1975). Pelo meio, dois interregnos: o da Alemanha nazi, Segunda Guerra Mundial e anos subsequentes, e uma interrupção, de meados dos anos 60 a meados da década seguinte, com origem na complexidade do triângulo completado por Elfriede Heidegger, a esposa do filósofo já desde a relação extraconjugal que este manteve com Arendt, enquanto sua aluna em Marburg, no seminário de Filosofia, como se lê na carta de novembro de 1925 que inaugura este arquivo:
“Preciso de me encontrar ainda hoje com a menina e falar-lhe ao coração. Tudo entre nós deve ser directo, claro e puro. Só assim seremos dignos de podermos encontrar-nos. O facto de a menina se ter tornado minha aluna e eu seu professor foi apenas a ocasião propícia para o que nos aconteceu.”
Como nota a editora destas Cartas no posfácio, esta primeira parte é dominada claramente por Heidegger, não havendo quase nenhuma carta de Arendt nesta fase da publicação. Esta longa travessia pela relação dos dois é feita então através da voz do filósofo, num registo sóbrio, muito pouco interessante para quem aqui procurar matéria de gossip do mundo intelectual, mas curioso pela interseção com o vocabulário conceptual na questão de que este mais se ocupou, a da ontologia:
“Só temos o direito de ser, conquanto estejamos em condições de dar atenção. Pois nós mesmos só podemos dar o que exigimos de nós. Além disso, somente a profundidade, na qual posso exigir de mim mesmo o meu ser, decide quanto ao meu ser em relação aos outros. E o facto de o amor ser é um legado propiciador de alegria no meio da possibilidade da existência.”
Desta primeira parte, sobressai o texto “Sombras”, uma espécie de entrada de diário de Arendt, escrito em abril de 1925 na terceira pessoa, que desvenda os fantasmas de uma mente precocemente brilhante, atormentada por tudo o que sabia “através de uma experiência e atenção incessantemente despertas”. Arendt vivia então, com 19 anos, entre as “garras de uma angústia (…) diante da existência em geral”. A paixão e a admiração por Heidegger terá aqui o seu início, escrevendo, mais para o final da correspondência, em carta de 1972, como este é a única pessoa que ela encontrou que efetivamente sabe ler: “(…) senti-me como há cinquenta anos, quando aprendi a ler contigo. (…) Ninguém lê ou jamais leu como tu.” E é precisamente de leituras que o grosso da correspondência se ocupa, com reflexões sobre a leitura da Montanha Mágica, de Hölderlin, Agostinho, Kafka, assim como dos seus pares da Filosofia, destacando-se aqui o maître à penser de ambos Edmund Husserl.
É no final da primeira parte que Heidegger dá conta das “calúnias” sobre as quais, subentende-se, Hannah o terá questionado: “Os boatos que te inquietam são calúnias plenamente de acordo com as outras experiências pelas quais passei nos últimos anos. (…) A insinuação de que não cumprimento judeus é uma difamação tão baixa que a anotarei aliás para mim futuramente. (…) Os dois bolseiros da sociedade beneficente, cuja nomeação consegui nos últimos três semestres, são judeus. Quem conseguiu através de mim uma bolsa para Roma é um judeu. Quem quiser chamar a isto ‘anti-semitismo furioso’, pode fazê-lo.” Não hesita, porém, em confirmar que é antissemita em “questões universitárias”, como sempre havia sido. É bizarro, para o leitor interessado na questão do totalitarismo, como esta carta demonstra a ingenuidade política, face ao antissemitismo nacional-socialista feito lei, de um existencialista a quem devemos noções antológicas do que é o estar-no-mundo (Dasein). Da mesma forma que espantam a vontade de conhecimento e reflexão de Hannah Arendt, que levam a que, já após a publicação das obras que a tornaram um nome incontornável no estudo do Holocausto, restabeleça até ao fim da vida o contacto com um ex-adepto de Hitler, lutando vigorosamente pela edição e circulação dos seus trabalhos, dificultado pelo seu estatuto de persona non grata e proibição de lecionar. Um fator explicativo será aquilo que os une: o profundo desprezo pela universidade e investigação feitas no pós-guerra. Neste sentido, é interessante ler como via Heidegger a Europa e os perigos que a assolavam no início da década de 50, ou as impressões de Arendt sobre as réplicas das primeiras ondas de choque feministas nos Estados Unidos, no início dos anos 70: “Aqui esta desordem ainda prossegue em conexão com os movimentos de libertação e as estudantes perguntam como se faz para que continuem a ser amadas pelos homens. Quando lhes dizemos, então, entre outras coisas, que cozinhar bem e trabalhar não aviltam, elas ficam completamente desconcertadas.”
Para os especialistas em Filosofia, será do maior interesse explorar o índice onomástico no final do livro e recolher as impressões de Martin e Hannah sobre as discussões que foram tendo lugar ao longo do século XX. A edição é cuidada e consiste, em grande parte, de anexos explicativos do material de cada um dos documentos, tornando-o um manual de grande utilidade sobretudo para especialistas da obra de ambos.
Por defeito profissional, Luis Pimenta Lopes escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.
Mais recensões/crítica literária AQUI.