home Antologia, LITERATURA História de Dois Patifes – Fialho de Almeida (Guerra e Paz, 2020)

História de Dois Patifes – Fialho de Almeida (Guerra e Paz, 2020)

História de Dois Patifes e Outras Prosas é uma antologia de Fialho de Almeida que se revela inteligente e capaz de oferecer uma representatividade selectiva do autor e da sua obra. Como se percebe, um volume relativamente breve, como este é, não poderia dar conta de uma obra que o próprio Fialho avaliava em «mil novecentas e oitenta e tantas páginas compactas» (p.139). No entanto, graças às suas escolhas, este volume consegue dar uma visão abrangente de uma obra multímoda e instigante, que merece mais leitores do que o permite a escassez de edições modernas do escritor.
Esta recolha da obra de Fialho repate-se pela ficção – com a inclusão de seis contos do autor –, a crónica – de que se acolhem dois exemplos – e ainda «Eu – Aubiografia», além de uma secção dedicada à vida e à bibliografia do escritor. Os contos provêm de diversos livros de Fialho de Almeida: não só um dos mais consagrados dos seus títulos, Contos, mas também A Cidade do Vício e O País das Uvas, além do póstumo Ave Migradora (e não Aves Migradoras, como se lê no prefácio). Há ainda um texto – o fundamental «Autobiografia – Eu» – retirado de outro póstumo do autor, À Esquina (Jornal de Um Vagabundo). As crónicas foram retiradas do livro mais reconhecido de Fialho, Os Gatos. O que significa, como se perceberá, um encontro feliz de escolhas de uma obra que se exprimiu em diversas modalidades da prosa que aqui se reúnem.
É curioso notar que a nota autobiogáfica de Fialho é praticamente igual à famosa de uma das suas maiores irritações literárias: Eça de Queiroz, que se comparava ao principado de Andorra para refeir a sua falta de história. Pois é assim que Fialho de Almeida se apresenta como «indivíduo que pecisamente se orgulha de não ter história» (p.155).O mais marcante, o próprio o diz, foi a sua passagem pela farmácia em que trabalhou em criança – e havia de se formar em Medicina, sem que viesse a exercer –, ou foi miseravelmente explorado, o que é o mais certo. Dessa torpe e marcante experiência, o escritor resgata este resumo cortante: «Esta residência entre drogas estragou-me a saúde, e além de outros achaques de espírito, incutiu-me uma tendência mórbida para as letras. Gastei sete anos a percorrer todos os lugaes comuns dos escritores nacionais, de 1830 para cá, e a matar o tédio desta leitura com romances de cadernetas e pequenos ensaios literários de fábrica própria para os jornais de província, onde a petulância das minhas asneiras me acarretou, por Leiria e Viseu, foros de escritorinho esperançoso.» (p.157) A restante biografia de Fialho de Almeida foi uma luta permanente de si contra todos. A sua «pena donde continuamente espirravam revoltas», conforme o explica o próprio, «fatalmente havia de [lhe] agravar as dificuldades do caminho (p.158). Um fim de vida aburguesado, casado com uma herdeira abastada, parece uma última estocada irónica numa trajectória marcada pela derrisão, o espírito cáustico e intransigente contra os poderosos, os ridículos e os imprópios. Como não ver na sua fase final o alvo perfeito para o chicote censório de Fialho?
Com a sua arte, Fialho de Almeida consegue ser factual e certeiro, mas nunca deixa de ser empolgante, ainda que no seu apego escrito ao concreto captável – «Deu com o chapéu de Fernanda enroscado na faixa de tule branco, e a passadas lentas foi para ele, com o dorso alto, espiralando a cauda, toda contente do achado. A tarde caía, e o gabinete carregava-se de sombra.» (p.29) Mesmo ao debruçar-se sobre um tema tão banal como o tempo que faz, a sua escrita nunca é um boletim meteorológico disfarçado de literatura. Fialho volta a sua atenção nervosa e cuidada para a atmosfera não como um pintor frustrado, mas como um praticante lúcido do seu ofício de escrita – «Dia agreste, cheio de incertezas no alto, com alternativas de sol e contramarchas de nuvens, que muito baixas, deixando farrapos pelos cabeços, a espaços truncavam a cordilheira, embaciando a transparência viva das verduras.» (p.67); «Nuvenzinhas pálidas, gazes de tessitura frágil, punhos de valencienne e plumas de leques rasgados em crispações de raiva corriam» (p.74); «Duas horas, três, quatro, cinco horas. Lá desce a noite, as gralhas debandaram, cada vez o tom dos céus é mais lutuoso, e lenta, diáfana, a luz do ar já mal contorna as formas hesitantes.» (p.83) Não se trata de ilustração, decorativismo, nem da sensaboria do simples contexto, mas a acabada expressão de uma arte idiossincrática e poderosa.
A escrita de Fialho de Almeida é um permanente desejo de criatividade. Existem amplas zonas da sua obra percorridas por uma dinâmica de invenção. Porque, entre as múltiplas contradições deste genial acumulador de paradoxos, está, precisamente, este: o escrito era o resumo quase exacto do que tanto censurava nos outros: um inspirado extravagante do verbo, um artista sempre em busca de surpreender e de chocar de frente com a frase-feita, o lugar-comum. É claro que, ao pôr em prática esse plano, incorria – muitas vezes, genialmente – em atropelos à norma, em chamarizes do verbo e da disposição dos elementos no discurso. Esta antologia é uma imagem possível desse estado de coisas, e deve dizer-se que, dentro dos limites que se impôs, forma um quadro que faz justiça a uma obra que, na introdução ao volume, se chama, com total exactidão, «vasta, múltipla, fragmentária e influente.» (p.12). O próprio Fialho se antecipou à posteridade nessa constatação. Aliás, a posteridade, ironicamente, tem sido tão sinuosa para o autor, como foi o seu percurso de homem e de autor. Num texto que foi uma acertada inclusão em História de Dois Patifes e Outras Prosas, «Eu – Autobiogafia», Fialho de Almeida volta-se para si mesmo com invulgar sinceridade, revê em baixa as suas origens (que não precisavam de ser rebaixadas) e analisa sem disfarces a sua produção – «os meus próprios amigos reparam no carácter fragmentário dos meus escritos» (p.160). Prestação frontal, esta sua, que não hesita sequer em relatar «o martírio do pão ganho aos patacos», nem tão pouco os seus próprios «prodígios de energia heróica consumida a vencer economias de cigarros e de ceias», que o obrigavam a «desaparecer enfim de toda a parte onde o “sucesso tem praça”, e poderia ser notado o nosso casaco velho, o nosso cabelo crescido e as nossas botas roídas nos tacões» (p.158). Esta lisura no tratamento da sua desdita não o impede de estender aos outros a mesma dura honestidade – «O público entre nós não diviniza senão fabricantes de grandes calhamaços (critério natural num país onde a leitura é toda de lombadas)» (p.160). Hoje, a desculpa não serve. Acerta plenamente, no que diz, o prefácio editorial desta selecta da obra de Fialho: este é um escritor caído em esquecimento. Que este conjunto sirva para contrariar esse descaso.

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