home Antologia, LITERATURA História de uma Família Decente – Rosa Ventrella (Dom Quixote, 2019)

História de uma Família Decente – Rosa Ventrella (Dom Quixote, 2019)

Muitos factores de História de uma Família Decente o tornam numa obra de referência. Apesar do detalhe e rigor das imagens descritas, demasiado reais para lhes podermos ficar indiferentes, já que ganham verdadeiros contornos fotográficos, a obra deixa-nos margem para fabular sobre as suas personagens, com quem criamos laços de verdadeiro carinho e dependência.

O mais inusitado é Rosa Ventrella ter criado uma história simples: uma garota que vive e cresce num bairro pobre de pescadores e no seio de uma família relativamente disfuncional, cedo aprende a calar os sentimentos de revolta. Maria de Santis, alcunhada de «Malacarne», tem por único amigo Michele, filho de uma temida família conhecida pelos «Senzasagne» . Com ele, Maria partilha os caminhos para a escola, a violência dura e crua das outras crianças, os pequenos segredos e, até, o primeiro beijo. Neste ambiente socialmente degradado, Maria cedo descobre que a única forma de um dia voar para longe da miséria e da fealdade, é a dedicação ao estudo. A narrativa desenvolve-se, portanto, em torno de Maria «Malacarce», através do seu olhar de criança que, com simplicidade, nos transmite uma perspectiva sóbria e analítica de pendor claramente neo-realista. A sua invisibilidade (a que lhe é própria da sua pequenez e a que desenvolve para sua segurança) e a amizade de Michele, permitem-lhe sobreviver quase impune num ambiente que despreza mas que é, afinal, o único que lhe é familiar e a acolhe. O passaporte da cultura como meio para alterar o determinismo social e a visão algo pessimista da realidade, em que o resgate ao passado é aparentemente insolúvel, vêm a revelar-se eficazes e Maria permite-se albergar sonhos distintos dos demais.

Rosa Ventrella põe a nu os mais íntimos e primários instintos de uma criança, as constatações e ensinamentos do que é válido e precioso, do que pode constituir uma verdadeira relíquia num meio feroz: a beleza, a agilidade, o dinheiro. É através de Maria de Santids, que a autora nos revela a eterna luta de classes, as desigualdades sociais e os desmandos das elites. De resto, a história decorre de forma directa e arrebatadora e o leitor vai devorando linhas, páginas, capítulos, na ânsia de saber qual o destino da pequena «Malacarne», se conseguirá, por fim, cortar grilhetas com o pobre bairro de Bari, com a casa modesta onde as cóleras do pai, que se metamorfoseia de belo em besta, são o barómetro de toda uma família, enquanto vai tomando fé das caricatas relações de vizinhança, das carismáticas personagens que dão cor de sangue e verdade à narrativa. Só no final o leitor se questiona como lá chegou de forma tão ágil, obrigado a reconhecer a mestria na escolha de cada adjectivo, de cada palavra, com uma sábia temperança entre o que marca e enternece, entre o que fotografa e é romance, com destaque para a grandiosidade do amor, que nasce pueril entre duas crianças e se transmuta em paixão e necessidade, quando os corpos já adultos o desejam e permitem.

Maria e Michele têm toda a necessária substância para protagonistas de um filme que nos aquecerá o espírito e a alma num Domingo chuvoso de uma tarde de Inverno, e que nos deixa a nostalgia de uma obra intemporal.

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