Hoje estarás comigo no paraíso, segundo romance de Bruno Vieira Amaral, é um livro de memórias, contado na primeira pessoa, por uma personagem homónima do autor. Talvez seja uma autobiografia, o que justificaria a minúcia dos detalhes, a espessura narrativa na descrição dos personagens, dos habitantes de um bairro pobre, dos miúdos do subúrbio da margem Sul que parecem saltar das páginas e ganhar vida, alma e corpo.
Bruno Vieira Amaral, enceta uma investigação sobre a morte violenta de um primo – João Jorge – que o leva aos arquivos de jornais da época, O Crime e o Tal & Qual, aos processos legais, ao reencontro com o passado e com os périplos pelos cemitérios: «Os cemitérios perpetuam as diferenças. A memória é um bem dos poderosos», «Não são os mortos que clamam por justiça ou vingança. Somos nós que imploramos por sentido, para que os nossos mortos não tenham morrido em vão, para que as nossas vidas não nos pareçam tão abusrdas.».
Assim se noticiava: «ACONTECEU NA BAIXA DA BANHEIRA, neste Portugal dos anos oitenta onde a violência sobe a passos largos e as “maneiras de matar” evoluem ao ritmo de uma brutalidade de arrepiar cabelo».
As incontornáveis referências às novelas brasileiras dos anos oitenta, as alcunhas dos rapazes, amigos de brincadeiras de infância, o reencontro com os locais do passado porque «As pessoas da nossa infância são lugares secretos», sucedem-se em pérolas linguísticas, que encerram uma visão profunda, pensada e sentida dos recantos da intimidade humana. São brindes constantes com que o autor nos presenteia, usando uma simplicidade e generosidade admiráveis, sobretudo pela acuidade analítica e comparativa entre o que retém um olhar de criança e o que percepciona o olhar já adulto: «Com a idade começamos a encostar-nos às paredes e a detectar os movimentos nas esquinas, nas caves, nos recantos sombrios, e a encontrar esses imensos e contraditórios campos ocultos onde, descobrimos com espanto, a maior parte da vida acontece.».
Na pesquisa pelo passado do jovem familiar morto, o autor/personagem «Desejava poder desenhar o corpo de João Jorge como se desenhasse um mapa e assim poder apagar as palavras inúteis que já escrevera» e, na verdade, pela escrita fácil, fluente, dá-nos um retrato de notável qualidade, sem floreados inúteis, corajoso, porque não escamoteia a realidade e, sobretudo, de aguda sensibilidade, ao desenhar locais tão sagrados como as relações com o pai ausente (que redescobre para o perder) e o avô prematuramente falecido. «Morto e a caminho da sepultura, o meu avô já só era as fotografias que lhe sobreviveram».
“Era isso que eu lhe diria hoje: «Avô, levanta os teus olhos do chão, nunca desvies o olhar de quem te ofende.» Só que eu sou como ele, também eu tendo a olhar para o chão e tenho de me obrigar a lutar contra esse atavismo que, noutra época, me levaria ao mesmo destino do meu avô, o de construir pequenas gaiolas para os grilos.” – Assim se expõe e se nos oferece a peito aberto o autor/personagem.
Angola revivida pelo saudosismo e frustração dos portugueses, memória colectiva das famílias retornadas, desajustadas, é a viagem obrigatória que o autor desenrola em conversa com o jornalista Osvaldo Peres: «Deve escrever sobre Angola, amigo Vieira, porque sem Angola a história que me contou não faz sentido.». João Jorge, oriundo de Luanda, permanece morto, as circunstâncias da sua morte permanecem indecifráveis, «É esse o peso esmagador do passado: o gesto de há cinco minutos é tão irrecuperável como o de há cinco séculos.», mas para lá do assassinato, e como resume o jornalista «a história deve servir para perceber porque é que um rapazito de dez anos diz uma coisa tão verdadeira e tão linda como “Cuidado comigo, que eu sou de Luanda.”».
Muitas personagens, quase todas, mereciam referência particular, o valente amigo Aurélio, Orlando, o BMX, Antero o ambaquista, Fançonny, mas chegará evidenciar Dom Bruno do Vale da Amoreira (título carinhoso que o pai lhe confere) para converter o leitor à descoberta de “Hoje estarás comigo no paraíso”.
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