Homenagem à Catalunha é um espantoso ensaio acerca de como os movimentos políticos de esquerda se permitem uma sectarização altamente perniciosa, capaz até de perder guerras (inclusivamente a do combate contra o fascismo).
Demarcam-se duas narrativas aqui justapostas, ambas necessárias para compreender em profundidade este fenómeno. Primeiro, Orwell descreve com espantosa minúcia os horrores da guerra. Seja nas descrições da vida numa trincheira, que quase podemos cheirar e tocar, ou narrando as intrigas políticas que a bafejam lá longe, pelas costas, aqui encontramos um vívido retrato da brutalidade da Guerra Civil Espanhola nos anos 30. A sublevação de Franco e a resistência que se lhe seguiu surgem aqui na 1ª pessoa, por quem, sendo estrangeiro, quis tomar parte deste combate ao fascismo.
Neste ponto, é muito interessante verificar que o fascismo era visto como um mal universal, conferindo um matiz colectivo e plural ao seu combate, paralelo que hoje dificilmente encontraremos. É também de notar que essa resistência se compôs de milhares de pessoas que, segundo o autor, pegaram em armas sobretudo em nome de um ideal (e é no desenvolvimento destes apontamentos que vai preenchendo a narrativa com um lirismo assinalável). Não se tratou duma iniciativa puramente militar. Neste relato percebemos que, desde logo, se demarcou o carácter revolucionário desta resistência, que via no fascismo o destino último do capitalismo que repudiavam. A resistência dá-se, portanto, graças aos milhares de trabalhadores que lutavam para travar o fascismo, mas sobretudo por um ideal de vida em que a riqueza não pertencesse apenas a alguns, mas antes estivesse distribuída por todos.
Mas aqui encontramos ainda um segundo plano: uma profunda reflexão política e social acerca dos movimentos revolucionários. À esquerda, Orwell circunscreve-a grosso modo em três facções: os comunistas/socialistas (PSUC), os anarquistas (CNL) e os “trotskistas” (POUM), cujas milícias integrou. Se todas elas, enquanto movimentos de esquerda, se propunham a derrubar um regime feudalista, garantindo o poder ao povo em todos os domínios da vida em sociedade (e Orwell retrata muito bem a Barcelona colectivizada, sem patrões e empregados, repudiando o padrão burguês, destruindo igrejas; por outras palavras “um Estado de trabalhadores”), seria de esperar que partilhassem as mesmas motivações. Neste relato percebemos que não. Orwell, ideologicamente mais próximo dos próprios anarquistas, acaba por se ver perseguido pelos comunistas como um perigoso “trotskista” (escapando às prisões ilegais, torturas e fuzilamentos com sofrimento), dedicando-lhes críticas ao longo de toda a obra. É assinalável que o autor os equipare aos fascistas nos métodos – autoritários e mais tarde repressivos – mas também nos objectivos. Segundo o autor, foram os comunistas a rejeitar primeiramente a Revolução, na medida em que não pretendiam uma cisão com o capitalismo. Esta crítica, muito séria ainda que apresentada com uma naturalidade desconcertante, fundamenta-a num facto difícil de refutar: a evidência da necessidade de proteger o investimento de capital estrangeiro (nomeadamente russo) em Espanha.
São poderosas as descrições da frente de batalha: privações de toda a espécie, o medo inoculado pelas ameaças permanentes, a tensão das esperas prolongadas e a diluição das diferenças perante uma real ameaça à sobrevivência.
A dicotomia representada pela Barcelona que Orwell encontra quando chega a Espanha, e a que encontra no seu regresso da frente de batalha é marcante. Se primeiro a viveu como uma cidade verdadeiramente proletária, como poucas se terão visto, depois regressou para a encontrar de novo cativa duma burguesia aristocrata, e mais ainda de um medo terrível (que se diria que explode, catártico, nos Combates de Maio, aqui narrados na 1ª pessoa).
Não é um livro para corações fracos. É uma obra que nos obriga a uma reflexão profunda e a questionar os dogmas que povoam a nossa actualidade. Talvez por isso mesmo, mais pertinente do que nunca.
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