Uma humilde gralha de natureza temporal estatelava-se por todos os pósteres afixados nas ruas, nos bares e nas paredes das universidades. No dia 2 de maio de 1980 – e não no dia 22, como tinha sido, equivocadamente, estampado – os Joy Division deram aquele que viria a ser o seu último concerto, no High Hall da Universidade de Birmingham, Reino Unido. Nessa noite de início de maio, no recinto, empanturrado de estudantes, punks e rockers, ouvia-se a útima música da banda pós-punk A Certain Ratio, encarregada do warm-up. Os devotos, os melómanos, os diletantes, depois de terem pago £1.50 pelos early bird tickets ou £1.75 pelos ingressos vendidos à porta do evento, aguardavam, expectante e diligentemente, pela entrada dos Joy Division. Já tarde, e a más horas, Bernard Sumner, Ian Curtis, Peter Hook e Stephen Morris sobem ao palco e começam a tocar Ceremony. A chusma de aficionados alista-se numa roda-vida azafamada.
No dia 15 de julho de 1956 nasceu um poeta no Hospital Memorial, em Lancashire – Manchester, filho primogénito de Kevin e Doreen Curtis. Nasceu um poeta-filósofo, um poeta-cantor, um poeta-superdotado, que palmilhou a sua fugaz existência encantado pela literatura de William Burroughs e Franz Kafka, apaixonado pela música dos Kraftwerk e dos Sex Pistols e extasiado pelos vultos incontornáveis de David Bowie e Iggy Pop. No dia 15 de julho de 1956 nasceu o poeta-autor Ian Kevin Curtis e hoje, dia 18 de maio de 2020, assinalam-se os 40 anos da sua morte.
O enredo da vida de Ian Curtis, vocalista dos Joy Division, foi, inatacavelmente, ardiloso. Uma infância ditada pelo desconsolo e pela taciturnidade, apesar de uma irrepreensível performance escolar, Curtis casou-se aos 19 anos com Deborah Woodruff, de quem teve uma filha, Natalie, em abril de 1979. Dono de uma voz baixo-barítono ímpar e de uma personalidade sui generis, arquitetada por idiossincrasias prodigiosas, Ian Curtis cantava e expressava-se com o corpo em palco de uma forma muito própria e original – uma consequência remanescente e lancinante das copiosas convulsões que tinha, recorrentemente, de enfrentar – e a expressão epilepsy dance acabou por lhe ficar para sempre associada. Diagnosticado com epilepsia aos 22 anos, experienciou desde sempre na sua vida, mesmo antes da diagnose, episódios de medo, ansiedade, transtorno e perturbações de humor, tornando-se esses os ingredientes inevitáveis para confecionar a depressão proeminente pela qual foi, constantemente, acossado. Nos últimos 2 anos de vida, a condição física de Curtis exacerbou-se de tal maneira (agravada, igualmente, por um consumo insensato de álcool e tabaco) que o cantor sofreu múltiplas convulsões complicadas antes e durante alguns concertos. Em abril de 1980, durante um concerto para 3,000 pessoas em Finsbury Park, o técnico de luz, ignorando as indicações muito específicas providenciadas pela banda, lançou uma série de luzes estroboscópicas, que provocaram o colapso instantâneo de Curtis para cima da bateria de Stephen Morris e o início de uma convulsão, tendo o cantor sido transportado, imediatamente, para o seu camarim. Ian Curtis acabou por se suicidar na manhã de 18 de maio de 1980, numa corda de estendal da roupa dentro de sua casa. Mas foi a navegar por entre esta conjuntura trágica e depressiva que o vocalista edificou um repertório inaudito de letras atestadas de alienação, marasmo e melancolia, ofertando-as aos dois únicos álbuns da banda de Salford: Unknown Pleasures (1979) e Closer (1980 – editado 2 meses depois da morte de Curtis). E esse catálogo de letras, manifestamente distinto e inédito, assim como a mestria da guitarra de Bernard Sumner, o baixo exímio de Peter Hook e a prestidigitação de Stephen Morris na bateria, fizeram com que os Joy Division se acabassem por destacar das restantes bandas do movimento pós-punk, conquistando, sossegadamente, um posto irremissível no pódio musical do século XX.
O High Hall da Universidade de Birmingham é sobrecarregado por aplausos fervorosos no final de Ceremony, que naquela noite do dia 2 de maio de 1980 ainda tinha o título provisório de New Song. Seguem-se Shadowplay, A Means To An End, Passover, New Dawn Fades, Twenty Four Hours, Transmission, Disorder, Isolation e Decades. Quase no final de Decades, Ian Curtis tropeça e cai para fora do palco. Sumner, Hook e Morris continuam a tocar. Curtis, ajudado pelo público, volta a subir para o palco e os Joy Division dividem a sua alegria com a plateia, brindando-a com um encore e interpretam Digital, a última música tocada ao vivo pelos 4 amigos de Manchester. No entanto, nós, durante estes 40 anos que se seguiram, continuámos a dançar, a dançar, a dançar, a dançar, a dançar ao som dos Joy Division, porque o nosso amor, pelo menos por eles, nunca será destruído.
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