O pressuposto de Ils nous ont oubliés é directo: um casal de intelectuais (Konrad e Madame Konrad no original de Bernhard) fechado numa “fortaleza” de gesso, isolada pelos elementos naturais (localizada numa floresta no que parece ser um país nórdico, com neve e o frio constantes), destrói-se mutuamente durante mais de três horas. A peça abre com o desenlace: ambos mortos na noite de Natal, no que parece ser um assassinato seguido de suicídio, de acordo com os diferentes testemunhos apresentados.
Peça baseada na obra Das Kalkwerk (pedreira, fábrica de calcário) de Thomas Bernhard, mantém os ecos do estilo que o celebrizou: a elocubração obsessiva acerca da solidão e da decadência daí decorrente, o horror face ao tédio e ao vazio da existência e a incapacidade de encarar o Outro, tornado obstáculo artificial aos desideratos do protagonista.
A acção começa pelo final, com uma série de relatos confluentes, à maneira policial, sobre um casal encontrado morto na pedreira por vizinhos e curiosos, familiares com as suas rotinas e excentricidades. A peça é uma reconstituição do seu percurso.
Konrad (Laurent Papot frenético, brutal, imprevisível) comprou a pedreira, para onde se mudou com a mulher incapacitada para conseguir concretizar o trabalho académico de uma vida acerca da audição. Mas as páginas, experiências, testes e iterações vão-se sucedendo, com desvios cada vez inusitados, sem que o trabalho avance. O património que chegou com o casal (burguês, de posses) foi sendo delapidado pelo próprio sem conhecimento da mulher, que insiste em manter contacto via postal com um passado que se dissolveu.
O desenho de luz e som precisos e plenos de intencionalidade – com planos de câmara apertados e feixes de luz destacando a exiguidade dos espaços, aliados a sons ambiente soturnos e às ambiências crípticas criadas pela música ao vivo de Florian Stache – destacam a irreversível eliminação dos filtros sociais diante do isolamento, a vitória da natureza e dos impulsos, projectado na dinâmica de violência e manipulação crescente do casal. O móbil central do espectáculo é mesmo esta escalada emocional crónica exponenciada pela solidão, com o casal preso num jogo de mútua (in)tolerância a roçar o sado-masoquismo, em que a mulher solicita em permanência o marido que, por sua vez, testa os limites dela com intermináveis e repetitivos testes vocais e auditivos, prometendo leituras em troca.
O desempenho imaculado da belga Marijke Pinoy (soberba no modo como, em momentos de monólogo, se transfigura, rejuvenescida como uma nova personagem) consegue instalar a dúvida sobre a real sanidade e dependência da Sra. Konrad, pela clarividência dos flashbacks por exemplo, mas também pelo tom desdenhoso com que troça e ironiza sobre o Konrad e o seu interminável projecto, parecendo agir sempre com o propósito de controlo e subjugação, através do poder que tem sobre o seu tempo/disponibilidade.
Bernhard é ubíquo na peça, quer na ambiência sombria que perpassa toda a representação, quer através de Konrad, como representante de um certo tipo de artista atormentado (real ou ficticiamente) pela eterna paranoia Eu vs. O Mundo, que o impossibilita de criar pelo simples facto de existir, o que, agravado pelo contexto tenebroso em que se move, contribui para a aniquilação do corpo como último reduto e prova do fracasso de uma vida, juntamente com a única testemunha desse desaire (a sua mulher). Mas, ao contrário da sua obra, em Ils nous ont oubliés, o absurdo cómico dessa “luta” é exposto desde o início, pela farsa que Konrad protagoniza diariamente como académico e estudioso, transformando os seus actos e monólogos, mesmo os mais desesperados, num mero subterfúgio para a sua inabilidade e total dispersão. Apesar da presença vaga na peça de uma matéria cara a Bernhard – as agruras e especificidades do processo critivo – este acaba subalternizado pelo ascendente da inércia e da vida interior sobre a acção capaz de mudança real. Como se um nevão intenso cobrisse corpos e mentes de forma progressiva e irreversível.
Um recurso interessante da encenação foi a introdução da personagem da enfermeira (Camille Voglaire), ausente do original onde o isolamento é completo, sem qualquer presença exterior constante. Para além das suas funções de cuidadora e até protectora da Sra. Konrad, a sua juventude e espontaneidade acabam por desbloquear vários sentidos do texto dramático, conferindo uma maior completude ao retrato do casal Konrad. Nas conversas que enceta com eles, quer em conjunto quer face a face, estimula o aprofundamento das suas personas e motivos de formas diversas, mais perto do tabu partilhado que os atormenta, escondido pelo seu extremo calculismo: o fracasso.
Na Sra. Konrad desperta a generosidade (insiste que leve as jóias de família consigo) e as memórias de uma juventude feliz, em que se revela culta, sociável e resolvida, na vida amorosa e profissional, e descreve os detalhes da decadência da relação matrimonial. Por outro lado, confronta Konrad (por vezes a medo) com o caos do seu trabalho e com os restantes detalhes da sua triste existência – a obstinação, a incúria, a prodigalidade injustificada, a avareza. No desenlace, assume um protagonismo inesperado: o casal debate-se com egos e limites ultrapassados, mas é ela que segura a arma do crime nas mãos. Acaba por tornar-se uma mediadora entre as personagens e do todo dramático com o público, apesar de nunca quebrar a quarta parede, constituindo-se como mais um elemento propiciador da fluidez do espectáculo.
A presença da natureza (com pombos e um fantástico corvo, que parecia saber com rigor as suas movimentações para obter o máximo impacto) e dos vizinhos em cena, ilustra a invasão constante e crescente do espaço íntimo e já deveras convuluto das personagens, conseguida através da circulação aleatória de elementos sem rosto pelos vários espaços e da sua estranha interacção com os protagonistas. Konrad e a mulher, sempre avançando na sua trip solitária e delirante, pouco ligam a estes transeuntes, que os adoptam como diversão e objecto de chacota, perfeitos para aquele espaço indefinido, quase diáfano e sem tempo, onde pouco mais lhes resta do que as funções corporais básicas, o hedonismo e a espera pela morte.
Apesar das assustadoras três horas e quarenta e cinco minutos de espectáculo, com dois intervalos de quinze minutos, o artifício bem vindo das tecnologias contemporâneas (um sistema multi-câmaras bem oleado, projecções das filmagens ao vivo, sobrepostas com as próprias cenas de forma complementar e cuidada, numa perspectiva envolvente e disruptiva), conjugadas com as discretas e eficazes movimentações de equipa técnica, actores e adereços, incita em permanência a atenção do espectador e nem a barreira da língua fez esmorecer as suas reacções bem perceptíveis.
Espectáculos como este desafiam-nos porque, por defeito, esperamos deles um vislumbre de continuidade do Eu, em última instância, de redenção e validação para as nossas angústias e desejos inconfessados. Talvez venha daí a porosidade e permanência da Arte. Ora, como encontrar tudo isto através do convívio com um homem perdido num casamento arruinado, em guerra aberta com o seu passado de promessas e um futuro adiado? Aqui entram os artistas e a sua capacidade de tornar verosímil a acção em cena, convidando-nos a abandonar a nossa pele por uma nova, para experimentar se (e o que) serve.
Por um acaso feliz este Ils nous ont oubliés encaixou à justa, com alguns desconfortos que aproximaram ainda mais os resistentes entre si e da representação. Uma peça estimulante e provocadora, que abraça todas as suas imperfeições e merecia mais récitas no palco do Teatro Nacional São João.
Entrevista com a encenadora Severine Chavrier AQUI
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Ficha Técnica
A partir de Das Kalkwerk, de Thomas Bernhard
Encenação Séverine Chavrier
Tradução francesa (la plâtrière) Louise Servicen Cenografia Louise Sari Vídeo Quentin Vigier Desenho de som Simon d’Anselme de Puisaye, Séverine Chavrier Desenho de luz Germain Fourvel Figurinos Andrea Matweber Músico Florian Satche Treino de pássaros Tristan Plot Direção técnica Corto Tremorin
Interpretação Laurent Papot, Marijke Pinoy, Camille Voglaire
Produção Cdn Orléans/Centre-Val De Loire
Coprodução Théâtre De Liège – Tax Shelter, Théâtre National De Strasbourg, Théâtredelacité – Cdn Toulouse Occitanie, Tandem Scène Nationale Arras-Douai, Teatre Nacional De Catalunya com o apoio de Région Centre val De Loire
Estreia 12 mar 2022 Teatre Nacional de Catalunya (Barcelona)
Dur. aprox. 3:45 com dois intervalos m/12 anos
Evento organizado no âmbito da Temporada Portugal-França 2022
Espetáculo em língua francesa, legendado em português.
Foto © Christophe Raynaud de Lage
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