home Antologia, LITERATURA Índice Médio de Felicidade – David Machado (D. Quixote, 2013)

Índice Médio de Felicidade – David Machado (D. Quixote, 2013)

Crise. Palavra terrível para o comum dos mortais, maná para o escritor, porque dela jorram os choques essenciais à boa ficção. Em Portugal, o seu mero uso evoca o período negro que mediou entre a entrada da troika nos comandos das finanças do País e a sua saída, com todos os antecedentes e sequelas. Um dos seus elementos mais perturbadores foi a dormência em que mergulhou toda a nação, contaminando as artes, incapazes de acompanhar a realidade, com destaque para a literatura, em que os ecos desta depressão colectiva foram nulos, algo deveras inusitado, tendo em conta a abundância de potencial matéria para a escrita. Índice Médio da Felicidade, escrito por David Machado, foi das raras obras capazes de quebrar este silêncio de forma bastante literal, focando-se nas realidades pessoais e familiares que escaparam às parangonas e ciclos noticiosos.

O conceito de “índice médio de felicidade” foi o ponto de partida para a concepção da obra. De zero a dez, quão satisfeito se sente com a sua vida no seu todo? Eis a pergunta que procura responder, por via de um conjunto de variáveis. É este sentimento que acaba por ser o cerne do livro: a sua definição, prática, a partilha que dela fazemos, assim como as consequências da sua existência ou ausência.

David Machado desenvencilha-se bem na construção das personagens, focando a evolução do enredo em Daniel, protagonista/narrador presente da primeira à última página. Daniel é um homem do seu tempo. Trinta e sete anos, casado e com dois filhos, perde o emprego numa agência de viagens quando esta fica insolvente. Começa de novo, luta todos os dias para reerguer a sua vida. “Em meio ano concorri a vinte e seis empregos e não aconteceu nada.” (13) Começa a colaborar num negócio “enviesado” de venda de aspiradores, em que tem que investir para trabalhar, mas a alternativa é o desemprego. A sua esperança, essa é inabalável. “(…) eu acreditava na possibilidade de refazer tudo (…) E não estava zangado. Nessa altura ainda (…) acreditava que, se fizesse tudo certo, a vida não voltaria a atravessar-se no meu caminho.” (15)

Apesar da solidão quase total (decide ficar em Lisboa e a família vai viver para Viana do Castelo), é o constante diálogo de que enche a sua existência que, sem o admitir, lhe traz essa inusitada esperança. Todo o livro é um relato imaginado que faz ao amigo Almodôvar do quotidiano, por vezes com amigos partilhados, já que este foi preso por assalto a uma bomba de abastecimento de combustível, e recusa-se recebê-lo na cadeia. Expediente inteligente para o desenvolvimento da acção, esta relação assume diversas configurações formais, conforme as conveniências do que está a ser contado, passando da epístola ao diálogo fantasiado, com uma fluidez estranha apenas no início, para depois se tornar marca distintiva, uma troca de ideias de Daniel com a sua consciência, recriando as respostas verosímeis do amigo “invisível”.

O “Plano” é outra parte importante da sua rotina, documento sempre reajustado, em que deixa por escrito o destino a dar ao seu futuro, expectativas e desejos realistas e possíveis, que rapidamente passam a miragens, e tudo é reformulado quase diariamente, nos piores tempos. A relação familiar com a mulher Marta e os filhos Mateus (9 anos) e Flor (13 anos) é episódica e mediada pela tecnologia. O casamento está por um fio e os filhos compensam a ausência com expedientes algo alarmantes. A filha não quer prosseguir os estudos, lê de forma imparável e nos jornais sublinha todas as palavras negativas. O filho decide ser budista, porque quer ser feliz e desligar-se das vontades. “A Marta fazia-me falta (…) Quando falávamos, esforçava-me para lhe mostrar que estava tudo bem, que a distância não nos afectava, que os nossos problemas de dinheiro e a minha situação eram passageiros, uma espécie de férias. Ela fazia a mesma coisa. (…) parecia mesmo estar tudo bem. Mas é possível que não estivesse. E os meus filhos. As saudades dos meus filhos (…)” (29)

Xavier é o negativo de Daniel, resume o que seria a existência vazia de esperança. Amigo de infância, acaba por isolar-se no seu mundo controlado: o quarto, de onde tem pânico de sair. É dele a autoria do índice – “um sistema, na verdade. É complicado. Mas a vida é complicada, Daniel.” (27) – e co-autoria, com o encarcerado Almodôvar, de um site que pretendia formar uma comunidade capaz de ajudar quem necessitasse, mas falhou. Um dia, sem aviso, desaparece, e Daniel teme o pior. Descobrimos que Ávila, ex-professor de Matemática de ambos, caído em desgraça por um boato, era a razão da sua aventura e Daniel acaba por envolver-se. A família de Almodôvar surge pela primeira vez: Vasco, o filho, na pior fase da sua vida ainda adolescente, e Clara, a mãe destroçada, dividida entre três empregos e sem tempo para estar presente. São estes os dados com que David Machado joga na primeira parte deste livro, numa construção sólida das personagens principais e com algumas secundárias interessantes, como Aníbal, o chefe do gangue juvenil.

A segunda parte da obra começa no terceiro terço do livro, quando um pedido de ajuda no site, de uma senhora idosa paraplégica, espoleta uma viagem de carrinha à Suíça. Com quase todo o elenco junto no mesmo cenário, forçado a interagir, novo mecanismo dramático sacode a atenção do leitor e permite desenvolver as personagens pela sua própria voz, o que acaba por resultar e fazer sentido no todo, devolvendo dinâmica ao livro. Todavia este último “acto” soa um pouco inverosímil, por (pelo menos) um facto óbvio: a improbabilidade forte de que todos os infantes e adolescentes do elenco aceitassem, do nada e de bom grado, deixar amigos e tecnologia por um gesto de bondade para com uma desconhecida.

Outro ponto bem conseguido do livro são os diálogos. Tensos, ágeis e curtos, conferindo naturalidade a momentos normalmente marcados pelo excesso de pontuação e verbos sinónimos ou alegóricos de dizer ou falar. O mal é cortado pela raiz e nem os travessões são poupados, contribuindo visual e mentalmente para uma leitura mais sincronizada com a velocidade do pensamento e da oralidade.

Em jeito de balanço, o optimismo amargo e a fé quase desesperada e cega de Daniel, acaba por dar o tom às duas centenas e meia de páginas do Índice Médio de Felicidade, e evolui para uma força mobilizadora e finalmente catártica no desenlace. Mas não se deixem enganar. Apesar de ter todos os ingredientes para uma mistura de emoções baratas e manipulação básica dos sentimentos do leitor, este livro de David Machado, reeditado recentemente, escapa nos interstícios dessa malha em que tantos se deixam enredar, para conseguir um retrato bem gizado de um período ainda em cicatrização que marcou tantas famílias e anónimos, e uma criação que, sem a perfeição dos ungidos, tem uma escrita limpa e sem truques, cada vez mais rara e bem acima da média para os chamados “bestsellers”, rótulo que o preconceito não permite associar à literatura de qualidade. Os rótulos são a forma mais preguiçosa e fútil de arrumar as realidade, e a literatura não é excepção. Ignorem-nos, porque a felicidade também se faz destas boas surpresas.

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