Há livros e livros. Istambul Istambul de Burhan Sönmez é dos que nos ficam para sempre guardados na memória. É uma obra extraordinária, de uma beleza inteligente e subtil, que nos fala da dignidade humana, das aspirações mais nobres, do poder da imaginação e da capacidade indizível de sobrevivência de quatro homens encerrados numa cela subterrânea e constantemente sujeitos às mais impiedosas torturas.
«O inferno não é o lugar onde sofremos, é o lugar onde ninguém nos ouve sofrer»
O mais extraordinário nesta obra, se é possível destacar qualquer parte sobre o todo, é a mestria com que o Autor, pela voz de cada uma das personagens encarceradas, nos fala da Liberdade, enquanto nos conduz pelas ruas de Istambul. Esta Liberdade é a que reside no íntimo de cada um, impossível de capturar, mais do que um valor ou um direito, que se apresenta como a capacidade de cada um daqueles homens se elevar ao mais sublime, voar para lá do tempo, das grades e das paredes. Mistura-se com a esperança mas supera-a, confunde-se com a imaginação mas ultrapassa-a porque é real, porque é a Verdade.
«Em nome da esperança toleramos o mal. Mas se não formos senhores do presente, que garantias temos para o futuro? A esperança é a mentira dos pregadores, dos políticos e dos ricos. Enganam-nos com palavras e encobrem-nos a verdade».
O jovem estudante Demirtay, o barbeiro Kamo, o velho revolucionário Kuheylan e o médico Cerrahpasa são os protagonistas, presos políticos, juntamente com uma extraordinária mulher – Zinê Sveda – e, claro, Istambul, a cidade/personagem que acolhe os indiferentes, os amantes, os utópicos e os massacrados.
«Istambul é vasta, dizia, existe uma vida diferente por detrás de cada muro, um muro diferente por detrás de cada vida.».
Esta obra, devolve-nos a fé no Homem, ao mesmo tempo que a corrói, impregna-nos do Bem enquanto nos confronta com o Mal, pontapeia-nos brutalmente com feridas, sangue e dor e acarinha-nos, envolve-nos, enternece-nos com a singeleza das histórias trocadas, com os jantares, brindes e cigarros virtuais que os quatro homens, de tudo despojados, partilham na fronteira entre o sonho e a realidade.
«Da mesma maneira que o tempo para quando alguém sofre, também para quando ri. O passado e o presente são apagados, perdura apenas o infinito vivido naquele instante.».
A enigmática e omnipresente Istambul é o palco do passado de cada um deles, simbólica cidade dos contos de encantar, que guarda os seus caminhos e memórias, o que os levou ali, a fé e o engano e, sempre, inquestionavelmente, o Amor.
«O que fazia de uma cidade uma cidade era o olhar de uma pessoa».
O olhar de cada um destes homens para Istambul, para o seu íntimo, para as fronteiras entre o céu e o inferno, para os algozes torturadores, representantes do diabo e dos homens, enriquecido de enigmas e comoventes recordações, força o leitor a questionar-se sobre as suas próprias crenças e convicções, sobre as suas próprias forças e valores. Qual é o limite da nossa resistência e dignidade? Poderíamos ser algum destes heróis abandonados?
«Sim, agarrar-se a uma crença transformava qualquer um num demónio. Aquele que considerava as suas próprias crenças superiores olhava para os outros com desdém. Reunia todo o valor da vida na palma da mão e via a origem da bondade exclusivamente em si próprio».
Istambul Istambul é uma obra de leitura obrigatória, sublime nas palavras, irrepetível no poder da mensagem.