home Antologia, LITERATURA Jalan Jalan – Afonso Cruz (Companhia das Letras, 2017)

Jalan Jalan – Afonso Cruz (Companhia das Letras, 2017)

“A viagem é um esforço quotidiano”. É praxe começar-se tudo pelo início, é um facilitismo compreensível. No entanto, nada nos impede que abordemos os assuntos pelo meio, ou por qualquer outra fase. Assim, a frase citada encontra-se na página 368 do livro de Afonso Cruz, Jalan Jalan – Uma Leitura do Mundo, e pode ser um lema perpassa as 646 faces de papel que a Companhia das Letras editou pela primeira vez em Novembro de 2017. Curiosamente, o autor cita Godard, dizendo “que todas as histórias precisam de ter um princípio, meio e fim, mas não necessariamente nessa ordem” (p. 646).

O ponto focal do livro é a viagem. A viagem como deslocação, como processo de sairmos de onde estamos, independentemente do destino, mas também como movimentação do Eu para fora de si, mesmo que depois retorne não sendo quem foi, porque a viagem todos muda. Para além disso, implica a alteridade e “a realidade tem as rodas quadradas” (p. 51), é preciso que se empurre, um acto volitivo para nos movermos em direcção a algum local.

O livro tem uma estrutura que não obriga a qualquer sequência necessária de leitura. Podemos abri-lo em qualquer parte e depararmo-nos com duas linhas escritas (p. 588) sobre a vida, ou então seis páginas acerca da entropia (p. 162.). Na sua maioria, as reflexões são curtas (duas ou três páginas), escritas num estilo acessível mas não simplista, com remissões para outras com elas relacionadas.

Ao longo da obra está estampada uma argúcia que aborda não apenas os temas mais simples (p. 374 – sobre o tanto), mas de igual modo alguns complexos (p. 566, o tempo, tri e quadridimensionalidade), deixando observações que nos surpreendem: “Nos casinos, as pessoas atiram os dados com força quando querem números altos e com delicadeza quando precisam de números baixo. A magia está sempre presente na nossa vida” (p. 63). Existe um arco peripatético que consegue englobar reflexões sobre batatas (p. 106 e 107), amor, céu e inferno, sociologia, política, ciência, estilo de vida, arte, moscas, joelhos, porcos, quântica, e tudo com uma profunda coerência intelectual filigranada, sem o menor assomo de presunção ou superioridade. Ao mesmo tempo, estamos na Grécia, Índia, Bolívia, Brasil, Ucrânia, Roménia, Marrocos, Albânia e mais bandeiras que não serão aqui encaixadas.

São citados autores de Arquimedes a Zenão, sempre apresentados com a leveza de quem divaga devagar entre estações de comboio. Há uma natural reminiscência de Umberto Eco, e destaca-se a forma de “joelho na terra” com que a erudição é apresentada, sempre natural evitando artifícios.

Apesar de perambulante, a escrita é precisa e, sendo cartesiana, nada tem de fria. Há afecto nas ideias acarinhadas, que vêm revestidas de memórias, enrobadas em vida e o sentido de humor do escritor é bem recortado: “À noite, Kostas pôs cama dele a trancar a porta da nossa cela e sentou-se nela a rezar. Um louco furioso pode fazer muito bem à devoção, pois o Kostas passou toa a noite com as contas na mão, a baloiçar o corpo para trás e para a frente, em completo pânico. Mas sem parar de rezar” (p. 278 e 279).

A única dificuldade poderá ser ultrapassar o prefácio, que tem a consistência de um “christmas pudding”, mas, como foi dito, também algumas boas obras têm as rodas quadradas e, finda a leitura, é certo que voltamos diferentes à rotina.

Afonso Cruz é ilustrador, cineasta e músico. Tem vários livros já publicados, premiados e traduzidos, tendo sido considerado pelo jornal Expresso como um dos nomes de que se ouvirá falar no futuro. Merecidamente.

Com a época de Natal bem próxima, fica aqui uma sugestão: se não podem oferecer viagens, ofereçam Jalan Jalan. Destina-se não apenas a quem gosta de ler, mas também a quem gosta de reflectir.

https://www.youtube.com/watch?v=DAglrQYdw_s

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