No palco de Jângal há efetivamente uma selva. Levantada a cortina, conhecemos a fauna que a habita e que será apresentada ao longo do espetáculo seccionada em ficheiros. Neste mundo paralelo não há cronos, mas files. O tempo é substituído pela ordenação em pastas, o espectador observa-se na interação diária com o mundo digital, olha o seu reflexo e pergunta-se: Quanto de nós é já objeto? Rato, ecrã, JPEG, Wi-Fi, Bluetooth. A catalogação em latim é do mundo que acabou. A deste admirável mundo novo é em inglês pós-shakespeareano. A partir da Teoria dos Objetos de Alexius Meinong e do Manifesto Cyborg de Donna Haraway, Jângal propõe uma viagem por um mundo de igualdade absoluta entre humanos e não-humanos. Esta categorização dualista é difícil. O humano não é necessariamente representado pelos atores, só porque o são fora da ficção. Os objetos também têm linguagem, logo ordenam, racionalizam, opinam. Não só a selva é pós-humana, como o teatro é pós-dramático, não tanto no texto, mas nas ferramentas. Sem legendas por cima do palco, não há comunicação entre as várias personagens nem connosco. Precisamos delas, o nosso olhar viaja do palco para a faixa superior do espaço cénico e vice-versa.
https://www.youtube.com/watch?v=nkSQHSR7FDU
As pastas dão ao espetáculo a sua única linearidade. Cada uma tem um nome que identifica o tema explorado: Diversão, Silêncio, Espanto, Canção Triste, Uma espécie de entrevista, Espectral, entre outros. As personagens mais parecidas com humanos são as de um mundo “pós-homem-branco-heterossexual”, os animais, de um mundo ecologicamente falido (veja-se a aranha McDonalds) e tecnologicamente manipulado (como a abelha eletrónica Wannabee). Robôs, rochedos falantes, plasticinas com problemas existenciais, um dragão transgénero (Drag-On), uma garrafa gigante de GHB que marca o passo da diversão sexual, concretizada pelos incontornáveis insufláveis praguianos de bananas e donuts copulando, entrevistas absurdas a la canais de notícias sensacionalistas, minutos desperdiçados a olhar para um boneco ridículo a la momentos de procrastinação no YouTube. Está lá a vida moderna de forma tão brutal que, puxados para o lugar de espectador no Rivoli, nos parece estar a ver um filme psicadélico, no qual, no entanto, somos personagens do quotidiano.
Crítica mordaz e excecionalmente bem conseguida aos desafios do Antropoceno e da vida digital, em que os humanos se digladiam todos os dias, resta dizer que Gisela João, saindo de uma boca de tubarão e cantando fados em formato distópico futurista, nos deixou sem fôlego.
A dramaturgia é de José Maria Vieira Mendes, André e. Teodósio e Pedro Penim, estes dois últimos autores também das letras cantadas por Gisela.
Imperdível.
https://www.youtube.com/watch?v=jvzF2RUEfVc
Por defeito profissional, Luis Pimenta Lopes escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.
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