Uma boa refeição gourmet torna-se única pelo seu todo: o cuidado na selecção e confecção dos alimentos, quantidades reduzidas de elevada qualidade, um conceito, a combinação de sabores distinta e a habilidade de criar uma experiência sensorial global.
A música de João Hasselberg tem esse raro dom: ser gourmet, em tudo o que de melhor esse conceito encerra, com o bónus da acessibilidade a todos que se dignem escutá-la.
Sem grandes dissertações melódicas, improvisos estratosféricos ou solos de largos minutos, Hasselberg consegue uma síntese muito pessoal entre o jazz e o pop/rock orelhudo. É rara a composição onde não encontremos uma canção, por vezes muito assobiável.
Este From Order to Chaos (Clean Feed, 2017), assinado em conjunto com o excelente guitarrista Pedro Branco, não sendo excepção, também não confirma a regra. Revela-se uma faceta promissora que o contrabaixista tem explorado nos últimos tempos: o improviso mais puro, via música electro-acústica. Caso fiquem curiosos, podem ouvir AQUI.
O elenco de músicos de luxo que o acompanha é garante para a qualidade da execução das composições, concorrendo para a diversidade de registos.
Desde o piano de João Paulo Esteves da Silva e de Luís Figueiredo (criador dos arranjos para “Amar pelos dois”, canção vencedora do renovado Festival da Canção ), ao saxofone ensandecido em modo free jazz de Alberto Cirera (infelizmente limitado a duas faixas), complementados com a criatividade melódica e técnica de Afonso Pais e Pedro Branco nas guitarras e o ritmo certeiro de João Lencastre, todos contribuem para um disco sólido e cujos parcos 26 minutos sabem a pouco.
A faixa de abertura “One For Debord” começa por evocar as músicas para piano preparado de John Cage, com uma saudável disputa entre solos dissonantes de Afonso Pais e Pedro Branco, desembocando no piano minimalista de João Paulo Esteves da Silva. O mote para o resto do álbum está dado: menos é mais.
“Sysiphus Back Pain” (excelente título bem irónico) é uma espreitadela às explorações electro-acústicas de Hasselberg. Luís Figueiredo dá o mote minimal no piano, melodia em loop até ao final, sobre o qual pairam apontamentos sonoros abstractos. Uma construção com potencial para um álbum inteiro.
Em destaque, pelo arrojo que demonstram quando confrontadas com o que Hasselberg fez até aqui, estão as excelentes “Basquiat´s Moses” e “I Would Prefer Not to”. Alberto Cirera dispara dois excelentes solos, e a banda só tem que tentar acompanhá-lo em “Basquiat´s Moses”. Pouco mais de 2 minutos de excelência, com Pedro Branco e João Lencastre a darem a toada perfeita ao improviso de Cirera.
“I Would Prefer Not To” é a nossa favorita do álbum. Composição de Pedro Branco, tem por base uma bela melodia de guitarra para o solo bem free de Alberto Cirera. Não é para todos os ouvidos, mas a absurda excelência é inegável.
A cereja no topo do bolo chega no final. George Steiner revela a “Absolutely Overwhelming Revelation” que o guiou para os braços da literatura, para nossa felicidade, com Pedro Branco a instrumentar o testemunho.
A Clean Feed trouxe à tona um João Hasselberg mais aventuroso e isso são excelentes notícias. A irrepreensível produção do próprio, em conjunto com Pedro Branco e a supervisão de Pedro Costa, confere detalhe ao registo, com todos os pequenos nadas a elevar a fasquia.
Um pequeno grande álbum, para fãs e iniciados, que deixa água na boca para o que se seguirá.