Chegamos tarde a este Karen, a propósito do Prémio Oceanos (prémio anual para a literatura em língua portuguesa, ex-Portugal Telecom, rebaptizado por motivos óbvios) que venceu em 2017, uma recompensa tardia mas merecida para Ana Teresa Pereira, escritora singular que aqui confirma todos os seus créditos.
Retomando a tradição literária britânica, em que o protagonista assumia o título e a alma-mater do romance, somos enredados por uma narrativa, de tons melodramáticos, em crescendo, orbitando em torno de uma mulher em processo de (re)descoberta de si, em todas as acepções que esse desiderato pode conter: amorosa, sensorial e experiencial. O seu passado é uma névoa que se vai dissipando e cuja súbita obliteração cedo percebemos ter por causa não apenas um trauma(tismo) físico, mas também uma angústia, a certeza de um amor que se tornava tóxico diante dos seus olhos. Com o decurso do tempo, a familiaridade e percepção de Karen vão-se aprofundando, com a evocação de momentos e emoções, espoletados por objectos, frases, perfumes, e, em paralelo, a sua persona literária densifica-se e enriquece, entre luzes e sombras de um carácter que permanece misterioso.
“(…) a mesma fragilidade das coisas que existem simplesmente, um pouco trémulas e cheias de esperança.” Pg 30
O cenário é típico dos romances a que aludimos: uma moradia bucólica em Northumberland, isolada e tranquila, partilhada com uma empregada – Emily – que a trata com algum desdém e distanciamento, mais importante naquele lar do que parece num primeiro contacto, e o seu marido – Alan – marido de Karen (escritor diletante em relação ao qual as emoções de Karen são contraditórias, e algo instintivo a leva a manter alguma distância). É deste triângulo que Karen se quer libertar no final… “Mas havia uma segunda história, a rapariga que se apaixonava por uma homem numa casa assombrada por outra mulher.” Com o regresso das memórias, acompanhamos o regresso de Karen à sua essência, e com ele, do romance, com uma escrita ágil e clara, sem descurar a elegância e a duplicidade de sentidos e presságios.
Karen vai construindo o puzzle com as peças que alcança, a espaços iludida sobre si e a percepção dos outros, os silêncios e as palavras carregadas de sentidos ocultos. Um casamento de conveniência, um amor interdito, discussões, uma tragédia, são estilhaços que ainda doem. A Arte é recordada como salvação, com os seus “pequenos rituais”. A luta contra a mulher anterior que agora rejeita, uma pele que anseia deixar para trás, para começar de novo. “Eu precisava de agarrar-me a essas memórias, revivê-las muitas vezes, porque sentia um desejo profundo de esquecer, seria fácil transformar-me em Karen, ficar com ele a ouvir Mark Eitzel…” (pg 98)
O capítulo final é paradigmático, ao fechar ardilosamente a narrativa, completando os espaços vazios deixados pelo capítulo inicial e convidando o leitor a fisicamente regressar a essas páginas para assim descortinar as diferenças. A ironia é que fica quase tudo pela alusão, e o livro termina rodeado de uma atmosfera etérea (“nada disto é real.” – pg. 121), deixando-nos a sensação desarmante de testemunhar a falsa simplicidade das grandes obras literárias.
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