Foi num dia chuvoso e particularmente triste que assisti a Karōshi, a nova criação do Teatro da Cidade, em cena no Teatro Nacional D. Maria II. Cheguei ao teatro apressado, depois da última despedida do José Mário Branco, na Voz do Operário. Uma pessoa com quem aprendi a pensar a política sem perder a poesia, a usar a raiva sem perder o afeto, a compreender que a arte não é só estética e técnica: é sobretudo uma relação de compromisso ético com o mundo.
Karōshi foi um certo conforto nesse dia triste e ao Teatro da Cidade agradeço terem feito com que o meu dia se virasse mais para o futuro e para o que dele fazemos. Karōshi é um espetáculo sólido, sensível, inteligente e bem escrito sobre uma das coisas com que a obra de José Mário Branco mais dialogava: o sentido que damos a essa vida que “só pode ser um espaço que está dentro dum abraço que se dá ou não se dá” (José Mário Branco, Mudar de Vida, 2007).
Karōshi é uma palavra que assume aqui um duplo sentido. Ela designa uma epidemia identificada pela OMS como a morte por excesso de trabalho, mas condensa, igualmente, o momento histórico das nossas sociedades, no qual o trabalho, a produtividade e a mercantilização do tempo se tornaram o alfa e ómega da nossa relação com o mundo. Um trabalho-mercadoria que contamina todas as esferas da nossa vida, individual e coletivamente. Uma vida-mutante, portanto, acelerada e sem controlo sobre o tempo, onde o “lazer” ou “tempo livre” são um mero exercício de recarregamento de baterias para o trabalho que vem.
Entra-se na sala e o cenário surpreende-nos de imediato, inóspito que é, Sci Fi qb, todo forrado a prata e quase sem elementos decorativos. É um lugar asseado, sem baratas, sem ácaros e sem pó. E tudo se concentra num palco colocado ao centro do cenário, em cima do qual se encontra Bob (Guilherme Gomes), um produtivo trabalhador, sentado numa secretária, de costas para o público. “Concentradíssimo”, repete-se várias vezes, para garantir que Bob tem todas as condições para continuar a laborar. Até uma algália foi introduzida a Bob, lembrando esse mundo deprimente de call centres e quejandos, onde até as idas à casa de banho são censuradas, cronometradas e monitorizadas.
Faz sentido que este Bob esteja em cima do palco, bem ao centro da sala. É uma espécie de altar, homenagem mórbida à centralidade sagrada que o trabalho ocupa na nossa existência. Mas nesse espaço limpo, asseado e produtivo, há também um pequeno trevo, perto da secretária, que improvavelmente teima em existir.
A santificação do trabalho é proporcional à sua colonização de todos os nossos espaços de existência e vida coletiva. Bob trabalha interruptamente e há um mocho galego que se ouve e vai denunciando que não é assim tão relevante se é dia ou noite, desde que o trabalho continue. Como musicava Sérgio Godinho no seu último disco (Nação Valente, 2018), quem assim trabalha já não sabe “nem do escuro nem de aurora”, nem do “viver dentro e o estar por fora”, tendo apenas “a solidão por companhia”.
Mas ninguém dorme para sempre e também Bob acordará. Um acordar improvável, hesitante e dúbio. Bob circula no espaço e também sobre si próprio. Qual o sentido para a vida quando se interrompe a engrenagem? De quem se tem saudades? De onde se vem e para onde se vai a seguir?
Neste Karōshi há uma reflexão muito inteligente sobre o que fazemos com a vida. Primeiro, porque souberam construir um efeito de espelho subtil sobre nós próprios, que assistimos e dialogamos com o espetáculo. Depois porque conseguem trabalhar sobre um problema central da existência humana, de uma forma simples e desassombrada, logo, sem clichés intelectuais para exibir dotes teóricos. Finalmente, a peça tem o mérito de resistir a uma dupla tentação: a paralisia individualista do “salve-se quem puder” e o romantismo ingénuo que assegura que a saída está ao virar da esquina. O que importa é o ato da procura, mesmo que hesitante e incerto.
Permitam-me, então, voltar a José Mário Branco. Em 1987 lançou um tema no álbum “Festas de Abril”, que tinha como título uma pergunta que era comum ouvir nos vários grupos de teatro em que participou: “Quantos é que nós somos?”. Abre assim esse poema: «Andamos a ver se vemos o caminho a percorrer/entre o Abril que fizemos e o que está por fazer/Andamos a ver se vemos quanto valemos de nós/qual é o nós que nós temos de cada vez que queremos sentir que não estamos sós». Numa das últimas grandes entrevistas que deu, destaca justamente esta importância de “andar a ver do caminho”, este ato da procura que tudo cria. O caminho não construído, nem sequer projetado. Andamos à procura dele, como Bob foi à procura da raiz do seu trevo.
É ato da procura insistente que resiste ao fatalismo e que é cúmplice das utopias que se seguem. Não tenho dúvidas de que o nosso querido José Mário Branco continuará a ser parte das nossas procuras pelos caminhos que falta encontrar. E não tenho dúvidas que nessas procuras muitas vezes se cruzará com este Teatro da Cidade. São elas e eles: Bernardo Souto, Guilherme Gomes, João Reixa, Nídia Roque e Rita Cabaço, com cenografia de Ângela Rocha e desenho de luz de Rui Seabra.
Por defeito profissional, o João Mineiro escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.
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