Writing is an unhealthy job, diz Deborah Levy, mas parece-me impossível deixar de fazê-lo. O Ocidente está pejado de lixo meritocrático que começa por se acumular dentro de casa – a roupa que aparece miraculosamente lavada, dobrada e arrumada. Encontra-se na figura da pessoa “doméstica” uma ideia de servidão, com a desculpa de que “é como se fosse da família!” mas não é; é alguém que nasceu para mais do que servir. Torna-se risível ouvir as pessoas privilegiadas dizer: “se eu consegui, tu também consegues!”
Percebi que não é no erro que se descobrem as melhores pérolas; na verdade, ostras felizes nem sequer dão pérolas, mas é nas conversas que tenho em várias línguas que encontro mais recursos. Simone Weil dizia que a atenção é a forma mais rara e pura de generosidade – ouvia falar na globalização com receio de ver o mundo cair no perigo da generalização. Em “Pode o subalterno falar?” a jovem indiana Spivak relata como não consegue expressar-se no contexto patriarcal e pós-colonial. Não serão a escuta e a atenção infraestruturas invisíveis de grande poder à nossa disposição?
Ainda prevalece a versão romantizada de Império Ocidental e defende-se que o conceito de Museu não deve ser descolonizado. Imaginem os museus após as devidas restituições. Difícil, não? Quase tão difícil como imaginar uma casa sem “empregada”. O privilégio entranhou-se em nós de forma tão celular que nem sequer ousamos questionar as estruturas que à nossa volta imperam.
A revolução não pede licença. Educação, foco, fazer mais escarcéu que a entidade opressora e menos que a pessoa oprimida, directamente no joelho e sem pedir desculpa. Em Cabo Verde, na ilha de São Vicente, Mindelo, existe o mito da kel pedra – quem nela se senta torna-se queer. Houvesse uma pedra que nos tornasse a todas boas pessoas e conscientes do nosso egoísmo.
Foto de capa de Pauliana Valente Pimentel, integrada no projecto fotográfico “Kel Pedra”
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Rafaela Jacinto é artista, ativista e queer desobediente do teatro e da escrita. “A música está na minha cabeça” é o seu terceiro livro, depois de “Regime” (2020) e “Fiz uma coisa má” (2021), ambos editados pela Douda Correria. Nasceu em 1994, licenciou-se em Teatro pela Escola Superior de Teatro e Cinema (2016) e é especialista em História e Cultura das Religiões pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (2019). Estudou ainda Cinema Documental e trabalhou na última década com os realizadores Joaquim Pinto e Nuno Leonel.