Sem o saber, na adolescência Kronos Quartet tocou em loop contínuo, depois de ter visto Requiem for a Dream, esse filme estranho adaptado de um romance igualmente estranho de Hubert Selby Jr., que serviu como introdução à cena cinematográfica alternativa do início dos anos 2000. Certamente ouvi o Kronos Quartet numa das inúmeras vezes que desenharam um cenário musical para artistas tão díspares como Patti Smith, Philip Glass e, mais recentemente, Laurie Anderson. Não há nada a apontar à técnica dos músicos que subiram ao palco do Theatro Circo. Os dois violinos, o violoncelo e a viola de arco são uma bela máquina afinada, que se move com destreza pelas composições encomendadas pelo quarteto – ou aquelas que os músicos pedem emprestado.
É de salientar a vivacidade dos músicos e a harmonia entre instrumentos, assim como a pluralidade de arranjos num concerto que é, na sua génese, uma releitura de composições vindas de lugares como a Índia, Somália, Marrocos ou o Iraque, com regressos ocasionais aos Estados Unidos, abarcando vários géneros musicais, desde o rock dos The Who e uma versão de Baba O’Reilly, a composições mais complexas e sombrias, como uma magnífica “Tentacles Reaching Out”, composta por Miroslav Tóth, longa elegia onde se arrancam dos violinos os mais agudos lamentos. Em “Potassium”, a vontade de se modernizarem e reinventarem constantemente toma corpo numa distorção que torna os instrumentos clássicos elétricos. Talvez menos feliz seja o uso de samples de instrumentos menos tradicionais pré-gravados, tornando o que parece ser uma tentativa de trazer ao público o som de instrumentos desconhecidos numa espécie de duelo entre o que está a ser tocado diante de nós e o que nos chega de longe, gerando um “cadáver esquisito”, cujos membros parecem desarticulados.
Se “Strange Fruit”, imortalizada por Billie Holiday, dialoga com “Alabama” de John Coltrane e relembra a intemporalidade da violência contra afro-americanos, “One Earth One People One Love” evoca novo momento da história americana que tem vindo a ser interpretado das mais diversas formas, desde os hipnotizantes “The Disintegration Loops” de William Basinski a esta composição de Terry Riley que o quarteto interpretou, com as palavras emprestadas de Alice Walker tendo como pano de fundo o 11 de Setembro.
David Harrington, fundador do quarteto, vai dando as coordenadas de cada composição ao público e apresenta o “Fifty for the Future”, um projeto muito bem intencionado que visa disponibilizar samples e partituras de composições encomendados ao quarteto, para que outros músicos os possam tocar à distancia, numa comunidade musical transnacional e transgeracional. Parece ser esta a direção do Kronos Quartet, que conta com quarenta anos de existência e se vai renovando, quer materialmente, quer musicalmente, ao expandir os seus tentáculos, aproximando áreas geográficas distantes e distintas, ao mesmo tempo que olha o passado e o transporta para o futuro da música erudita, numa missão de a traduzir para uma linguagem mais acessível ao grande público.
Foto de Waleed Shah
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