home Antologia, LITERATURA Lágrimas de Sal – Pietro Bartolo e Lidia Tilotta (Objectiva, 2017)

Lágrimas de Sal – Pietro Bartolo e Lidia Tilotta (Objectiva, 2017)

O espanto maior da Era da Rede Social é o que decorre de uma luta permanente. Os conteúdos lutam, frente aos nossos olhos, por atenção. O Facebook – sinédoque de todas as outras variações – estimula uma competição que é demasiado humana, porque permeia a superfície de um ecrã, que, como sabemos, é um objeto que, por defeito, seduz. A obsessão com a imagem também é a obsessão com não perder nada. O que as representações distópicas de um mundo dominado pela tecnologia nos têm feito ver, é que “a imagem vale mais do que mil palavras”. Penso, por exemplo, em Black Mirror, a série que assusta pelo que tem de aproximação entre aquilo que é distópico e aquilo que é quotidiano nas nossas vidas. Nada disto é novo, e já foi objeto de estudo, análise, crítica, de filósofos, agentes culturais, artistas latu sensu. Parece-me isso sim, que a questão da competitividade das imagens é largamente ignorada. O pequeno Aylan Kurdi, deitado, morto, nas areias do mar da Turquia, de t-shirt vermelha e calção, a 2 de setembro de 2015, compete com o gato fofinho, numa casa familiar de Nashville, Tenessee, caminhando em direção à câmara de um smartphone vestido de Napoleão. Um mesmo feed, um segundo de diferença, um único cérebro, várias sensibilidades chamadas a agir.
Contestamos, por isso, o cliché, e reclamamos que a palavra vale sempre mais do que a imagem. Quando começamos a ler Lágrimas de Sal, esbarramos contra um estranhamento. O livro, escrito por Pietro Bartolo, médico em Lampedusa, com colaboração da jornalista Lidia Tilotta, apresenta capítulos intercalados entre os exemplos concretos de situações ocorridas antes, durante e posteriormente à chegada de intermináveis levas de refugiados que tentam alcançar por via marítima a Europa, envolvendo-se em esquemas de traficantes no norte de África que lhes prometem o paraíso do lado de cá, e a vida pessoal do próprio Pietro, um registo autobiográfico, iniciando na sua infância na ilha. A descrita do próprio percurso irrita-nos, porque é sobre os refugiados esta história, é deles o centro da atenção, é deles que queremos saber. Esta pulsão é visível também no recente “Sea Sorrow”, documentário de Vanessa Redgrave sobre o mesmo assunto, que não recomendamos, precisamente porque é a ação da própria que domina grande parte do filme. No entanto, a desvantagem de Redgrave é o trunfo de Bartolo. Chegados ao final do livro, e sabendo que as lágrimas de sal são a do próprio avô, e não as dos refugiados, é Bartolo o centro. Porque do problema já todos sabemos, já todos ouvimos falar, já vimos as imagens que há para ver. E prescindimos, precisamente por isso, de descrever aqui os intermináveis casos de brutalidade, violência e sofrimento atrozes relatados neste livro. Sabemos da insuficiência da nossa sensibilidade para tanta dor que não conhecemos porque não sabemos o que é ter de, obrigatoriamente, enfrentar um deserto, um mar, com fome, com sede, com feridas, com suspeitas de estar grávida, com buracos no corpo, com perdas durante o caminho, materiais, humanas, físicas. É uma realidade que nos está barrada. Nesse sentido, ouvir (porque é esse o registo) a história pessoal de Pietro, é o único elemento que nos permite, na nossa incapacidade para imaginar a vivência, aproximar-nos da situação grotesca em Lampedusa, nas outras Lampedusas, dispersas pelo Mediterrâneo e nos “novos campos de concentração”, na Líbia. A recorrente comparação com o Holocausto é visível na única referência literária citada: “Noite”, do sobrevivente Elie Wiesel. Compreendemos talvez melhor as próprias experiências traumáticas com o mar, que o marcam desde pequeno, e que lhe dão ensinamentos vitais: “Há algumas coisas que talvez não sejam compreensíveis se não se tiver nascido numa ilha afastada de terra, como nós: deixar alguém, seja quem for, entregue às ondas não é admissível, é impensável”; também compreenderemos melhor o desespero perante a impotência do curso de medicina que nunca é suficiente para saber “a qual das muitas especializações não tiradas se deverá recorrer”. Ou ainda através do risco para a própria filha, contaminada com gavarro, trazido para casa pelo pai no contacto com os refugiados, perante a insensibilidade dos amigos da família: “Estavas a pedi-las”.

De todos os exemplos perturbadores de experiências vividas pelos refugiados, e de que este livro nos dá conta, deixamos apenas um, que permitirá entender o grotesco não só da situação, mas da convivência, num mesmo planeta, de planetas com regras e leis de justiça – humana ou divina – distintas. Tal como a convivência de Aylan e do gatinho fofinho no Facebook.
Num único desembarque, quinhentas pessoas chegam a Lampedusa. Quase todos com sarna: “Quando, antes de embarcar, se é obrigado a viver durante meses na Líbia em casebres sórdidos, a dormir em palheiros com cobertores cheios de ácaros e piolhos, é o mínimo que pode acontecer”. Numa estratégia narrativa comum ao longo do livro, Pietro foca depois um exemplo concreto no meio da massa aqui apresentada. Um casal jovem da Eritreia, com um caso gravíssimo de sarna, como o médico nunca tinha visto. A coceira leva a mais coceira, que leva a lesões na pele, que levam a feridas, que levam a dor extrema. Sarna extrema culmina numa tortura autoinfligida pelos próprios dedos. Uma tortura a si próprio que é inevitável. Durante sete anos, este casal viveu nesta condição. A administração de um tratamento muito forte, pelo próprio Pietro Bartolo, fez com que, dois dias depois, o casal estivesse curado, e o rapaz se ajoelhasse frente ao médico, beijando-lhe as mãos, agradecendo-lhe por poder dormir. Sete anos contra dois dias. Perante esta epifania, são precisas imagens para nos condoermos com o estado do mundo?

Por defeito profissional, Luis Pimenta Lopes escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.

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