A Edition Records lança esta semana um álbum muito aguardado do LAN Trio com um dos pianistas mais amados e respeitados da nossa música no elenco. De seu nome Atlântico, este disco traz a leveza da água salgada estival, com os perfumes das terras que o homónimo oceano banha. Encontramos África nos ritmos persistentes, metronómicos e soltos de Helge Andreas Norbakken, emulando as mãos e os diferentes paus directamente nas peles, criando uma ambiência a espaços quase tribal, mas também as cadências mais sofisticadas, com diversas percussões, madeiras e metais, surpreendendo o ouvido e o pezinho que não resiste a acompanhar a melodia. Esta fundo rico e complexo casa na perfeição com a elegância da abordagem de Mário Laginha ao teclado, combinando algum vigor nas repetições ao lado dos desvarios de Norbaken e com os silêncios espaçados à medida do virtuosismo do sopro de Julian Argüelles. O saxofonista, entre os timbres do barítono e do tenor, dá asas ao trio, com harmonizações directas temperadas de suaves tangentes aos temas, repletas de assomos à imaginação e à criatividade, sem receio de vazios lentos ou de relâmpagos rápidos e marcados, numa coesão melhor apreendida no todo do álbum.
A autoria das composições divide-se quase irmãmente entre os três e a empatia é palpável em todas as doze faixas deste tributo ao que nos une. Os “Improvisos” I, II, III são bem-vindos interlúdios entre mudanças de ânimo, preparando-nos para a infinidade de possibilidades à espreita a seguir. Argüelles evoca-nos Garbarek em Juroom (curiosamente escrita por Laginha, que deixa todo o espaço ao saxofonista, apenas com um breve solo no final, atestando ainda mais o espírito de saudável partilha na génese deste Atlântico), expressivo no ataque às notas mais altas mas sempre no controle absoluto do sopro e fluidez melódica.
“Cães à solta” está no nosso topo de melhores de 2020. Melodia singela sobre fundo discreto de batida metálica de Norbakken, entre latas e os pratos, passando depois para as madeiras, com Laginha e Arguelles entretidos em torno do tema em solos sucessivos. Para ouvir e repetir, imoderadamente. “Sweetie” é a resposta em “negativo” de Argüelles aos cães em desvario, com Norbakken ausente ou com pequenos apontamentos metálicos em eco, até ao ligeiro ascender de meio da música, para depois regressar à calmaria contemplativa da melancolia. Estrutura repetida em seguida, canção gravada e assobiada, necessidade de ouvir novamente e tocar a seguir, porque é bom demais para não tentar.
Ironicamente chamada “Silêncio”, a faixa final brinca com as dissonâncias leves entre as melodias que o saxofone e o piano vão deixando para Norbakken recolher as migalhas, com peles suavemente manipuladas e os pratos assomados a espaços em complemento. Seguem-se os solos, com Argüelles a soltar a criatividade e Laginha no seu território, para depois regressarmos depois incólumes ao tema.
É jazz seguro e belo, onde o desafio é encontrar e abraçar o cariz quase ecuménico e inclusivo das escolhas sónicas e dos caminhos trilhados. Um trio que funciona como uma unidade musical prolífica e coesa, capaz de tornar o jazz viciante, algo cada vez mais raro para qualquer estilo musical. Um dos grandes álbuns de 2020 chegou ainda a tempo para ajudar a salvar o que dele (e de nós) resta. Ouçamo-lo sem parcimónia.
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