Le Tartuffe ou L´Hypocrite, de Molière, apresentado na sua crueza e sexualidade, sem “deus ex machina”, nem concessões. Para comemorar os 400 anos de Molière, em plena Comédie-Française, o diretor belga Ivo van Hove, estrangeiro escolhido para montar o clássico francês na casa histórica do autor, ousou ainda mais: escolheu um Tartufo em três atos, versão censurada de 1664, com apoio textual de Koen Tachelet. É um Molière cru, violento, sensual, amoral e sintético, com uma dramaturgia precisa e suas ações escondidas nos versos muito bem reveladas pela direção.
Aqui não há a salvação para a família de Orgon do quinto ato, nem a punição de Tartufo – possivelmente acrescentada por Molière posteriormente para obter a autorização de Luís XIV para a peça. E ainda que percamos cenas do segundo ato, como a relação de Valère e Mariane ou que o papel da esperta Dorina – a empregada da casa – seja menor, o jogo teatral é eletrizante.
Ivo van Hove opta por um Tartufo misterioso, sedutor (o ator Christophe Montenez) talvez mesmo verdadeiramente apaixonado por Elmire – a também sensual atriz Marina Hands, esposa de Orgon – e… correspondido? O desejo move o jogo cênico e a relação de Tartufo e Elmire ganha um papel central e ambíguo, da mesma maneira que a sedução entre Tartufo e Orgon. Tartufo é complexo, difícil de ser julgado, um homem que não tem nada a perder e ainda possivelmente honesto quando fala de sua vileza e pequenez, romantizadas por Orgon.
A figura mais plana talvez seja a mãe de Orgon ( Madame Pernelle), a atriz Claude Mathieu, que traz o desejo moralizante à casa e, coincidência ou não, talvez sua cena inicial seja uma das poucas em que sentimos um tom excessivamente convencional na encenação – o texto sem ações.
Como na versão mais conhecida, ouvimos falar de Orgon e Tartufo muito antes de suas aparições. Mas a chegada de Orgon, o excelente ator Denis Podalydes, e sua escolha de expor uma vulnerabilidade bastante humana frente à paixão – não só espiritual, mas mesmo física como compreendemos no jogo dos atores – traz vida ao trabalho e o ritmo não se perde mais. A relação Orgon e Tartufo, desenvolvida com maestria pelos atores, é um dos principais trunfos da encenação. Temos ainda cenas radicais que nos surpreendem – o pai chega à extrema crueldade física com o filho, o ator Julien Frison. Tartufo deu à Orgon um sentido para a vida e o burguês é capaz de tudo para não perder este élan.
A música original, de Alexandre Desplat, é parceira importante da encenação e nos envolve desde o primeiro momento e até mesmo em nossa sensação de certo estranhamento diante dessa versão pouco conhecida do Tartufo. Os cenários, moduláveis, constroem e destroem mundos diante do público e se valem ainda das sugestões de espelhos laterais, com perspectivas próprias. E especialmente do desenho de um onipresente tabuleiro de jogo – um quadrado-tela no chão, constantemente pintado pela luz, de Jan Versweyveld, em que as cenas mais importantes se desenrolam, trazendo o necessário tom épico à montagem clássica. Os figurinos de An D´Huys nos trazem ao momento presente, em boa tensão com as falas em verso, e nossos Tartufos e Orgons contemporâneos.
Particularmente sugestiva é a clássica cena Orgon e o cunhado Cléante, Loïc Corbery, aqui uma espécie de intelectual progressista no seio da família que tenta, por meio do diálogo e argumentos, persuadir o apaixonado dono da casa. Conduzida com muito domínio das sutilezas envolvidas no famoso diálogo, vemos a impotência crescente das palavras, incapazes de fazer pontes entre as posições no mundo dos dois homens.
O verdadeiro xadrez entre os dois nos faz antever uma serie de camadas na tensa relação: desde uma sugestão implícita de inveja mesmo do cidadão médio, Orgon, em relação ao cunhado, “intelectual”, que impede a escuta. E, deste ponto de vista, defender Tartufo, não importa como, se torna uma questão emocional, de sobrevivência e afirmação diante da impotência; até a materialização da completa derrota de se buscar a verdade ou qualquer argumento, em via de tal paixão do burguês pela farsa. Impossível não tecer relações com a situação política de muitos países, como os Estados Unidos com Trump ou o Brasil de Bolsonaro e a pulsão pelo simulacro. Fatos, argumentos, são nada para aqueles que acreditam em seu “mito”.
Uma versão que nos permite celebrar a eterna contemporaneidade de Molière.
Em cena até 24 de abril de 2022.
Viviane Dias é dramaturga, jornalista, diretora e atriz brasileira. Pesquisadora teatral ligada à Universidade de São Paulo e Paris 8.
FICHA TÉCNICA
Com
Claude Mathieu
Denis Podalydès
Loïc Corbery
Christophe Montenez
Dominique Blanc
Julien Frison
Marina Hands
Vianney Arcel
Robin Azéma
Jérémy Berthoud
Héloïse Cholley
Fanny Jouffroy
Emma Laristan
Encenação : Ivo van Hove
Dramaturgia : Koen Tachelet
Cenografia e Iluminação : Jan Versweyveld
Figurinos : An D’Huys
Musica original : Alexandre Desplat
Colaboração musical : Solrey
Som : Pierre Routin
Vídeo : Renaud Rubiano
Maquilhagem : Claire Cohen
Assistência à encenação: Laurent Delvert
Assistência à cenografia : Jordan Vincent
Assistência à iluminação : François Thouret
Foto © Jan Versveyweld
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