Peça escolhida para celebrar a reabertura do Teatro Nacional São João, Lear (King Lear no original) é uma das quatro maiores de Shakespeare, (crítica especializada dixit), tida como de difícil execução e encenação. A sua recepção ao longo da História nem sempre foi positiva, frustrando as expectativas de público e crítica desde a sua estreia no início do século XVII. O seu desenlace desconcertante chegou a ser alterado nas décadas seguintes à morte de Shakespeare para o tornar mais ao gosto popular (com um final mais feliz).
A frustração é aliás transversal em Lear, e Shakespeare soube capitalizar esse caminho inexorável para o Nada em proveito do todo dramático, quebrando tabus formais (estrutura narrativa, progressão e desenlace das personagens, de que são exemplares – SPOILER – as mortes inesperadas e aparentemente evitáveis de Lear e Cordélia) e morais (a mulher capaz de violência brutal – Regan na Cena VII, a arrancar a barba de Gloucester com as mãos e a apunhalar pelas costas o Criado; o acto gratuito de Cornwall arrancar os olhos a Gloucester, amplificando a percepção do espectador de que vale tudo).
O assombro habitual diante da obra de Shakespeare estende-se também a Lear: como é que uma peça desta complexidade se mantém relevante há mais de quatro séculos e (neste caso) se sustenta com um palco praticamente sem adereços, com efeitos de luz e som mínimos e figurinos compostos por roupas actuais? Nada mais “fácil”: com um texto memorável e interpretações à altura.
Encontramos nesta reencarnação do velho demente uma obra erguida literalmente sobre “destroços” (como lhe chama Miguel Ramalhete Gomes no excelente Manual de Leitura). Perante a tarefa de trazer ao palco esta tragédia dura, Nuno Cardoso optou por simplicidade e rigor, assinalando em simultâneo os valores que sobressaem deste clássico: o humanismo e a vulnerabilidade próxima da nudez que faz ecoar em todos os aspectos da produção. O palco com as entranhas à mostra, adereços que parecem deslocados e acrescentados à última hora, figurinos que podiam ser utilizados por qualquer cidadão comum, a parafernália tecnológica topo de gama de sonoplastia e iluminação em regime minimal e eficiente, tudo se conjuga a favor do destaque aos actos e às palavras.
Acima de tudo, as palavras. Mesmo com tudo com o que se perde numa tradução, o trabalho de ourives de António M. Feijó é a trave mestra desta torre infernal. Adapta sem excluir, mantendo as toadas tão reconhecíveis no Bardo. Com a sua pujança intacta, mesmo com as inevitáveis formalidades que soam datadas nestes clássicos, os sentidos do texto transparecem, necessariamente adaptados pelas pressões da cena e da actualidade. Junte-se à receita um elenco com talento democraticamente distribuído e dificuldades aparentes tornam-se vantagens.
O foco do texto em emoções e desafios comuns à espécie humana, com tal precisão que Shakespeare parece ter-lhe tomado o pulso e bebido o seu sangue, explica o sucesso e veneração à sua dramaturgia e a esta peça em particular, normalmente a consagração dos grandes actores no ocaso da sua carreira. Mas todo este poder é inútil se entregue a um elenco que trema diante da responsabilidade de o ressuscitar ou de opções que lhe impõem o presente e o futuro de forma condescendente e pseudo-didáctica. Como em quase tudo, a liberdade e o equilíbrio são metas e neste Lear são a pedra de toque para um espectáculo inesquecível.
Para quem não conhece a história, uma breve sinopse. O Rei Lear (António Durães em versão magnífica e portentosa, frágil e ridícula, por vezes na mesma cena), diante do peso da idade, decide testar o alcance do seu poder e o amor das três filhas (Cordélia, Goneril e Regan) propondo-lhes um desafio: digam-me o quanto me amam e, conforme o meu agrado e vosso mérito, assim terão o quinhão correspondente do meu reino, em troca de se revezarem para me receberem mensalmente em vossa casa. Cordélia (Lisa Reis elegante e certeira) era a favorita a quem, tudo indica, pretendia conferir o maior quinhão, mas é surpreendido pelo seu discurso, em que a filha mais nova prova o seu amor e rectidão ao recusar o jogo vazio e hipócrita da lisonja, talvez consciente das suas implicações (dependência total do pai [e fica em aberto se algo mais incestuoso], em detrimento da sua relação matrimonial ainda em negociações com dois pretendentes do reino de França). Acto contínuo, Lear divide o reino por Goneril e Regan, espanca, deserda e ostraciza Cordelia e o Conde de Kent (que a defende) e o Rei de França aceita desposar Cordelia mesmo sem dote, com uma das deixas mais memoráveis da peça “O amor não é amor quando nele se mistura o cálculo.” Será?
Kent disfarça-se (nesta versão de Lear, de forma deveras peculiar e absurda [seria esse o desiderato dramático, enconder-se à vista de todos? Ou uma homenagem à filha escorraçada], com um vestido de saia curta, sendo ele um homem grisalho e basta pilosidade facial – João de Melo, parte essencial desta encenação, discreto, porém sempre marcante) para se manter na corte e proteger o seu Rei. E isto são só os primeiros minutos de mais de três horas…
O plano nado morto de Lear e o seu descontrolo emocional, já antes evidente para as filhas herdeiras, torna-se o leitmotiv para a sua união na conspiração para neutralizar o pai e daí retirarem o poder absoluto (diz uma corrente crítica) e/ou para protegerem a integridade da monarquia diante de um tirano louco com os dias contados, por acaso seu progenitor (dizem outras correntes). Joana Carvalho como Goneril e Margarida Carvalho como Regan são inexcedíveis nas suas interpretações, sem tiques ou maneirismos, perfeitas na frieza e calculismo que inculcam a cada deixa, sempre prestes a explodir.
Em paralelo, decorre a história do “bastardo” Edmund (Pedro Frias em casa, com os recursos interpretativos que lhe conhecemos usados em pleno ao serviço das cenas, numa actuação memorável), que recusa a tradicional subalternidade diante do pai Conde de Gloucester (Mário Santos, metade da peça vendado e arrastado por Rodrigo Santos, mas não menos presente e assertivo) e do irmão Edgar (Rodrigo Santos, camaleónico, a comprovar ser um dos actores mais surpreendentes da sua geração) e executa um plano implacável para chegar ao trono.
Eis as sementes para a espiral de caos que se segue até à conclusão brutal, com Lear perdido no olho do furacão que deixa no reino, acompanhado pelos proscritos da sociedade no caminho para a insanidade pueril: o Bobo (Maria Leite versátil e soberba, comme d´habitude), que acaba por morrer às mãos de Lear, o perfeito reflexo das suas acções e coro trágico; Gloucester, (entretanto cegado pelo Duque de Cornwall), e Edgar, transformado no louco “pobre Tom”, para se manter anónimo e escapar primeiro ao pai e depois ao irmão).
No final não morrem todos, mas a desesperança é tamanha diante do peso do ceptro que a incerteza com que termina o Acto I se prolonga após a descida do pano, ao som do piano de Peixe, com todo o elenco destroçado a ladeá-lo.
António M. Feijó fala de Lear AQUI
A dinâmica de toda a peça, excelente nas suas marcações, aparentemente desconexas e caóticas mas escondendo rigor e trabalho árduo, como um bom tema de jazz, é um dos grandes trunfos desta encenação inspirada, transformando o que poderiam ser três horas de suplício num evento que mantém o espectador colado ao assento e tentado a vociferar para o palco, como sucedia antes do o teatro se cercar da postiça solenidade que hoje se lhe cola. Há uma recusa da gratuitidade da violência e da banalização fortuita da sentimentalidade, mas também da actualização forçada, dirigindo o foco do espectador para a essência das palavras e dos actos que nos são familiares, nos gestos, terrores e vazios que nos inundam mais vezes do que aquelas que nos atrevemos a admitir.
Com as interpretações inatacáveis de todo o elenco, tudo flui e o tempo passa a voar. Com a ilusão de ter os actores ao seu alcance, o espectador sente-se incluído. A execução das cenas chave bem perto da boca de cena, bem iluminadas e sonorizadas, permitem-nos acesso privilegiado às nuances de cada expressão, aos matizes das vozes quase sem necessidade de amplificação, pressentir pulsos e respirações, quase partilhar o suor e a saliva dos que se abandonam para nosso deleite. Há momentos de destaque, verdadeiros quadros em cena, como os monólogos de Edmund em que anuncia ao público os seus planos como se fosse um artista de stand-up, o uso de uma câmara em tempo real pelo Bobo ou a simulação de suicídio assistido do Conde de Gloucester guiado por Edgar.
Um espectáculo memorável a todos os títulos.
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Ficha Técnica
DE WILLIAM SHAKESPEARE
ENCENAÇÃO NUNO CARDOSO
TRADUÇÃO ANTÓNIO M. FEIJÓ
APOIO À ENCENAÇÃO E À DRAMATURGIA MANUEL TUR
CENOGRAFIA F. RIBEIRO
GUARDA-ROUPA TNSJ
DESENHO DE LUZ JOSÉ ÁLVARO CORREIA
DESENHO DE SOM JOEL AZEVEDO
MÚSICA PEDRO ‘PEIXE’ CARDOSO
MOVIMENTO ELISABETE MAGALHÃES
INTERPRETAÇÃO
ANTÓNIO AFONSO PARRA, ANTÓNIO DURÃES, JOANA CARVALHO, JOÃO MELO, LISA REIS, MARGARIDA CARVALHO, MARIA LEITE, MÁRIO SANTOS, NUNO CARDOSO, PAULO FREIXINHO, PEDRO FRIAS, RODRIGO SANTOS, SÉRGIO SÁ CUNHA
PRODUÇÃO
TEATRO NACIONAL SÃO JOÃO
DUR. APROX. 3:35 COM INTERVALO
M/12 ANOS
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