Neste Ler Pessoa (Tinta da China, 2018), Jerónimo Pizarro prossegue o seu trabalho de excelência nos estudos pessoanos, que vem consistindo numa abordagem mais desempoeirada e intelectualmente honesta do valioso e gigantesco espólio deixado pelo mais famoso guarda-livros do planeta. Tal como na sua bibliografia anterior, Pizarro dá ao leitor os dados que tem e apresenta uma hipótese geral e temática para os interpretar, fazendo uso de um amplo leque de soluções, que passa tanto pelo trabalho dos seus contemporâneos, como pelo enquadramento cultural e político da época e pela interpretação dos textos, privilegiando a abrangência e abertura do seu raciocínio em detrimento de uma hermenêutica em vácuo e manipulada para um resultado, como vemos em tantos exemplos ligados ao estudo do escritor lisboeta.
Pizarro apresenta como ponto de partida para esta curta dissertação o título de obra de Pirandello, “Um, nenhum e cem mil”, e propõe-se comprovar em qual das três opções é enquadrável o todo pessoano: unidade, nulidade/anulação ou multiplicidade, utilizando uma série de bibliografia essencial ligada a cada uma das perspectivas. Antecipando já a conclusão, numa espécie de spoiler, depois de explanados os três caminhos, Pizarro opta por aceitar a possibilidade de Pessoa conter em si um pouco de uno, nulo e múltiplo, como explica a páginas tantas:
“Creio que Pessoa foi e não foi um, nenhum e cem mil. Creio que historicamente foi um, o homem que nasceu em 1888 e morreu em 1935 (…) literariamente, foi um e nenhum, porque optou por atenuar a sua identidade autoral, de modo a assumir a das suas personagens (…) postumamente é já cem mil (…), se tivermos em conta, sobretudo, a dimensão maciça da sua presença na internet.” (pg. 23) “Escapa-se-nos a todos. É mais nosso, porque continuamos a construí-lo. É menos nosso, porque cada vez é de mais pessoas.” (pg. 25)
Ao longo do livro vai reunindo provas para sustentar a sua defesa de um Pessoa múltiplo.
“…um autor não é necessariamente o único responsável pela produção de um texto (…) uma obra pode ser múltipla (…) um texto (…) pode ter múltiplas variantes; (…) um original é apenas um dos muitos testemunhos materiais de um processo criativo. (…) A meu ver – e é isso que se pretende defender nestas páginas – tanto a crítica literária, como a crítica textual beneficiam sempre que procuram ajustar as suas teorias e práticas – elas mesmas plurais – à multiplicidade dos seus objectos (…), abandonando o paradigma do uno a favor do paradigma do múltiplo.” (pg. 29/30).
O Livro do Desassossego é utilizado como prova última desta tese, no derradeiro capítulo, confrontando o conceito de autoria e edição e os agentes de ambos, não esquecendo o papel do leitor nesta dialéctica que se repete a cada nova abordagem ao texto, embora a tendência seja sempre para recuperar a falsa “ordem” que representa a existência omnipresente do autor.
“Por algum motivo (…) ansiamos a unidade, embora a multiplicidade seja mais real e torne tudo mais complexo e interessante.”
No capítulo que intitula «Interpretação» provavelmente o mais interessante do volume, demora-se sobre o conhecido poema Liberdade, e a forma como o seu verso mais conhecido (“Mas o melhor do mundo são crianças”) foi, erradamente, alterado, e como o mero acréscimo do artigo definido “as” subverte o seu real sentido. Para além disso, destaca a curiosidade de uma citação de Séneca que deveria constar no poema, segundo as notas do poeta e, embora oculta em quase todas as edições críticas, representaria uma ironia/farpa face a um discurso proferido por Salazar, em que o ilustre romano era também referido. Apresentando uma série de factos e datas que corroboram a teoria, assim como a autoria da mesma, pertencente a Luís Prista, cujo artigo «O melhor do mundo não são as crianças» não se lembrava de ter lido, Pizarro demonstra “(…)até que ponto o sentido de um texto, e nomeadamente de textos políticos, dificilmente pode ser inferido sem atender à história e ao contexto da publicação e da circulação do escrito (…)” (pg. 54). E prossegue:
“o poema «Liberdade» torna-se um elogio provocatório da preguiça de que o ditador acusa os intelectuais da oposição. Não é um poema de combate aberto (…) mas sim um poema de provocação velada. Ora então o suposto poema para a infância é, afinal, um poema para adultos inspirado pelo discurso de Salazar de 21 de Fevereiro de 1935? A resposta é sim.” (pg 61)
Assim caem os mitos: com factos. A nossa aposta é que Pessoa deixou propositadamente de parte a citação de Séneca, apenas para adensar a ironia e literalmente comprovar a teoria avançada pelo bolorento ditador.
O capítulo termina com um repto/constatação: “(…) parece-me claro que os leitores (…) ganhariam com a inserção, no corpus do poema, da citação de Séneca, com a correcta fixação de alguns versos e a mínima contextualização do texto. Nas escolas poder-se-ia, então, começar a escrever (…) poemas provocatórios contra diversos tipos de regimes autoritários, disfarçados de poemas para a infância. “ O diabo está mesmo nos detalhes.
O livro prossegue com a definição apurada do heteronimismo pessoano, novamente contextualizando e confrontando crítica e interpretação do tema, assim como conceitos vizinhos sujeitos a confusão com este, como pseudónimo e semi-heterónimo, destacando o grau de diferença de estilo como critério para utilizar os diferentes conceitos.
Foca-se depois em Caeiro, Campos e Reis, a “santíssima trindade” pessoana, desenvolvendo o caminho já descrito, para desembocar na magnum opus Livro de Desassossego, em que confirma a sua tese inicial da multiplicidade pessoana, discutindo como conseguiu Pessoa “Dizer o vulgar com elevação.”, debruçando-se também sobre a pretensa unidade conferida postumamente à obra, e o quanto deve a Cesário Verde a sua segunda parte, dedicada a Lisboa.
Um livro pequeno, que se devora em pouco tempo e de que saímos com a sensação rara de que acrescentamos real conhecimento relativo a uma temática em constante mutação e desenvolvimento e, como tal, sempre actual, apesar de o poeta ter já falecido em 1935.
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