Libreto para ficarem em casa seus anormais está em cena na sala estúdio do Teatro D. Maria II. A estranheza começa aí. No confinamento da ópera a uma sala menor, em dimensão e grandeza.
Este espetáculo é uma provocação desde o primeiro momento. A começar pelo título. Sem vírgulas, a um jorro, a um fôlego, como caracteriza Albano Jerónimo.
Vive da contradição. Chafurda no erro. E assume-o. Inteligentemente. Vive do exagero que nos interpela. O exagero como medida justa e necessária de que se fala a propósito do dramaturgo Rodrigo Garcia.
A peça que não é peça. A ópera que não é ópera. A desconstrução da ópera burguesa a olho nu.
A peça é um ensaio a que o público assiste, enquanto Albano Jerónimo, um encenador nazi (e autocrático, como todos?!…) vocifera um alemão macarrónico. Um alemão feito língua despótica que, sem prejuízo do tradutor desajeitado e das palavras projetadasque nos esquecemos de ver, tantas e tantas vezes,parecemos entender, de tão enfático, de tão visceral…
Fitzcarraldo é um alemão melómano cujo sonho é construir Teatro de Ópera na Amazónia, que grita e pede alma aos músicos e aos atores não atores. É ele que arranca palavras ininteligíveis, que repete não serem audíveis, nem percetíveis, aos atores da Crinabel (grupo da cooperativa Crianças Inadaptadas de Santa Isabel), enquanto acende um cigarro com um isqueiro cedido pelo público, público que corteja e provoca.
E como é que o texto, absolutamente desconcertante, do argentino Rodrigo Garcia nos chega? A dramaturgia é construída através do universo do cineasta alemão Werner Herzog. É Fitzcarraldo o alemão que, através da música, pretende doutrinar um povo, que nos conduz, enquanto o tal tradutor vai debitando, repetindo e escolhendo palavras que nos parecem importar menos que as intenções que elas guardam. Os músicos, esses, despejam as palavras de Garcia que nos estilhaçam e as luzes ofuscantes, as cores dos figurinos, o bailarino alinhado com a sua coreografia, todos parecem estranhamente próximos. Reais. Afinal é um ensaio. Repete-se. Altera-se. Os cabos estão no chão. O fotógrafo entra. Como se o palco fosse uma linha invisível que pode ser ultrapassada a qualquer momento. Por nós ou pelos atores. Há guitarras elétricas, um pianista, harpa, canto lírico e o texto sempre indecentemente provocatório.
É de explorar limites que se trata. É de fazer eclodir a revolução, a insurreição. E quando ela acontece, sentimos que a desejamos, mas também que tudo pode acontecer, que já não há controlo e que quem a espoletou pode ser esmagado ou esquecido por ela. Como acontece com Fitz.
Fitz cumpre-se e perde-se. O que há depois de se atingir o clímax? Talvez uma espécie de vazio. Talvez apenas o indivíduo, dilacerado pelo nada que é face à necessidade das emoções a que se permitiu e que não permanecem… E ultrapassado o limite, sem medo do erro, o que fica? O que resta depois de se alcançar a libertação? Do expoente do prazer até ao lastro de destruição que caminho se percorre?
Não é possível ficar indiferente ao espetáculo. Não há sequer espaço para que tal aconteça. E, pelo exagero, somos convocados às sensações primárias, a indagar, a sair da zona de conforto. Instigar à revolta, à metanoia, à transformação, não será o objetivo último do processo criativo?
Se um espetáculo nos deixou indagações, nos fez afundar nelas, então cumpriu-se, materializou-se… Disseram-nos para ficar, mas saímos de casa. Qual de nós não reage a provocações?
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Joana Neto, por defeito profissional, escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.