Limbo estreou o ano passado em Lisboa, passou pelo Porto e agora, depois da capital inglesa, continuará a viajar, evitando palcos convencionais. É já nos dias 6 e 7 de março que estará em Vila Real e a 14 em Torres Novas. Foi na Cavern, uma sala húmida e escura do The Vaults, espaço multidisciplinar subterrâneo à estação londrina de Waterloo, que Limbo fez parte da programação de um dos festivais de artes performativas mais estimulantes e diversificados da cidade – o Vault Festival.
O ar é pesado e escuro na sala, o chão está meio lamacento nalguns sítios, os olhos e a respiração estranham ligeiramente. Seis performers atravessam o espaço cortado num corredor longo, que divide o público em duas facções viradas uma para a outra. Esta organização do espaço funciona quase como uma materialização espacial do limbo, pois é nesse corredor e nas suas extremidades, mais afastadas das cadeiras dos espectadores, que vemos mas sobretudo ouvimos histórias, memórias, sonhos, divagações, medos, danças e canções. Sobretudo ouvimos, porque neste híbrido entre contadores de histórias e teatro físico, onde é fácil perder-se o sentido, são as palavras, ditas, gritadas, sussurradas e cantadas que, juntamente com a ordenação do espaço, fazem a sua força.
Limbo é um espectáculo frágil, com uma forma muito aberta e flexível. Os performers já estão a deambular no espaço quando o público entra na sala, como se nunca tivessem saído daquele lugar sombrio. Mas cumprimentam-nos, sem pressa, surpresa ou expectativa. Começam a contar-se histórias, depois um microfone é arrastado e uma espécie de número cómico-macabro-cabaresco, protagonizado pela actriz Filomena Cautela, faz o prólogo do caos que se irá desenrolar entre histórias, comentários, alusão à história The Red Shoes.
O que é que acontece no fim?Ela morre.
A partir do prólogo vão-se formando quadros. Os performers brincam com a realidade e a ficção, expressando-se em inglês e nas suas línguas: português, francês, italiano. Quando falam nas suas próprias línguas, outro performer traduz em inglês, ou é uma repetição do que já foi dito previamente. Por vezes a tradução bloqueia a musicalidade do discurso original e, em vez de lhe acrescentar uma orquestração de vozes, apenas lhe dá o sentido. Num momento mais perto do fim do espectáculo, existe uma pequena orquestra de línguas, quando cada um, à medida que conta o seu sonho/pesadelo, sente a urgência de continuar a contar no seu idioma.
Todos os performers contam a sua história e todas elas sugerem temas tão diferentes que, durante uma grande parte do espectáculo, apesar de existir contacto físico, olhares trocados e uma audição atenta, parecem-nos sempre ilhas sozinhas sem pontes entre si. Se no início da peça esses seis fantasmas deambulantes nos abrem a porta para uma atmosfera de sonho e sono, de vigília e mesmo de ecos de guerra (ritmada pelo som do metro e do comboio a passar mesmo entre paredes), durante os momentos corais a empatia, a tentativa de comunidade, é raramente conseguida – os sorrisos, os abraços, as coreografias são insuficientes para criar laços entre os espectros (e nós). Honrosa excepção para o momento liderado pela actriz Nádia Yracema, uma dança que vem de dentro, agitando todas as partículas do corpo, da língua ao pé, num crescendo a que se juntam os três performers masculinos, copiando-lhe os movimentos, aprendendo a sua linguagem. É nesse momento que nos chega uma honesta relação entre eles.
“India Song” faz parte da sonoplastia e Sara Carinhas faz-nos ouvir o silêncio do mundo subterrâneo por contraste, quando canta de sapatos vermelhos levada em braços. Ainda ali, entre lugares, falou-se das crianças adormecidas – o síndrome da resignação que ocorre em crianças refugiadas à espera de asilo – resistindo às dificuldades, corpos vivos mas em hibernação, em coma induzido, poupando-os à vida.
No desenlace ninguém morreu e as inúmeras imagens, visíveis ou invisíveis, fazem pontes com as nossas memórias, os comboios que apanhámos e os que perdemos, os sonhos e os sonos. O público, estremunhado no final, é rapidamente encaminhado pelos assistentes de sala (ou de caverna), porque a sala ia ser preparada para o espectáculo seguinte.
Ficha Técnica e Artística
Encenação: Sara Carinhas
Apoio à dramaturgia: Cristina Carvalhal
Interpretação: António Bollaño,Filomena Cautela, Marco Nanetti, Nádia Yracema, Pierre Ensergueix e Sara Carinhas
Consultoria Artística: Ana Vaz
Desenho de luz: Cristina Piedade
Desenho de som: Madalena Palmeirim
Apoios: Centro Nacional de Cultural; Teatro São Luiz; Egeac; DGArtes; Teatro Municipal do Porto-Rivoli, Pestana Group hotel
Produção: Causas Comuns
O nosso obrigado à Sofia Bernardo pelo cuidado, simpatia e disponibilidade.
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