Lisbon Sisters, espetáculo acabado de estrear no CCB, com encenação de Mário Coelho, tem como ponto de partida o romance As Virgens Suicidas de Jeffrey Eugenides, adaptado ao cinema por Sofia Coppola. O romance conta a história das irmãs Lisbon, que acabadas de chegar a Grosse Pointede, no Michigan, são educadas num ambiente católico, severo e castrador, e cuja vida sofre uma reviravolta quando Cecília, a irmã mais nova, se suicida. A mando dos pais, e sob o olhar da comunidade, as irmãs são enclausuradas em casa, antecipando o trágico final.
É nesta premissa que começa a construção narrativa de Mário Coelho. Quer no livro de Eugenides, quer no filme de Coppola, a intrigante história destas irmãs é sempre contada a partir de um ponto de vista externo, deslocado do próprio mundo interior daquelas personagens. A sua vida é imaginada ou intuída, refletida ou representada, na alteridade com quem as observa, imagina e com elas tenta comunicar. São miragens, vultos, figuras não concretas.
Mário Coelho propõe, então, um novo olhar e um outro ângulo de observação sobre esta história. Em Lisbon Sisters, e este é um dos seus méritos primordiais, a atenção é direcionada para o mundo interior e para o espaço que habitam estas personagens. O encenador propõe que lhes escutemos as vozes, que lhes conheçamos a vida, que lhes reconheçamos visibilidade, subjetividade, individualidade e representação. Tal exercício, como se verá, para além de corresponder a uma reinterpretação em busca da visibilidade, transforma definitivamente as possibilidades do nosso encontro com a obra, ampliando-a e convocando-a para um novo diálogo connosco, aqui e agora.
Lisbon Sisters é, definitivamente, uma criação de Mário Coelho, um autor, ator e encenador repleto de possibilidades, mas que aqui, de forma mais focada e polida, reencontra muitos dos diálogos em que tem investido tempo, dedicação e muito talento. É um teatro em que o autor se encontra a si próprio, no mesmo impulso com que busca diferentes vozes e narrativas. Está lá a infância, claro, esse universo de referência fundamental das suas criações, a que já dedicou uma trilogia – É possível respirar debaixo de água (2015), Elena (2017) e finado (2018) – e que marca também alguns dos seus espetáculos mais poderosos, e sobre os quais também já refletimos – É difícil para mim dançar (2018) e Fuck Me Gently (2019). A infância sempre presente, numa reflexão pessoal e íntima, procurando uma ideia de emancipação e de futuro.
Essa busca incessante move-se, também, a partir de um diálogo que estabelece entre as obras que o moldaram e a sua reinterpretação, à luz de novos pontos de vista com que se cruza. É por isso, aliás, que é tão feliz esta sua reinterpretação do texto de Eugenides e do filme de Coppola, a partir do encontro com o conjunto de atrizes que consigo pensaram o que poderia ser a vida daquelas mulheres naquele espaço. Assim, a evidente inquietação com as questões de género é trabalhada num exercício artístico onde se torna claro que o encenador, apesar de ter sido educado como homem, construiu com estas atrizes um diálogo de tal forma fecundo, que em nenhum momento a peça parece refletir uma visão masculina sobre o mundo daquelas mulheres. Não temos medo da palavra feminismo, porque é também disso que aqui se trata: a procura pelos encontros e aprendizagens onde se constrói e conquista visibilidade em domínios que estruturalmente permanecem na sombra.
Ora esses diálogos e encontros alimentam um outro aspeto fundamental da peça: a pulsão pela exploração e o reconhecimento das individualidades, que é sempre articulada com uma ideia de teatro enquanto espaço de construção coletiva. As atrizes brilham individualmente na medida em que todo o elenco brilha coletivamente. As partes compõem o todo com a consciência de que o todo é sempre maior que a soma das partes.
Muito especial, também, é o esforço feito na procura de uma nova linguagem entre o teatro e o cinema, um caminho híbrido entre a identidade e a representação, o corpo e a imagem, desenvolvido por um criador que encontrou o teatro quando o cinema já era a sua maior referência. Esse hibridismo de linguagens ainda não tem a fluidez que podemos reconhecer, por exemplo, aos trabalhos de Christiane Jatahy. No entanto, não temos dúvidas que aí chegará, até porque a sua procura não se move por uma tentativa de romper os cânones por mero fetiche formal, mas por uma vontade de pensar e de comunicar com todos os recursos de que dispomos.
Finalmente a escrita, que é de inspiração cinematográfica e que funciona como um guião dirigido à representação e à cena. Lisbon Sisters está mais próximo da respiração de Mustang (2015) que da claustrofobia de Canino (2009), encontra-se mais nos fluxos de consciência de Virigina Woolf que no olhar exterior de Jeffrey Eugenides. Em suma, é um objeto em forma de guião, que desenvolve um olhar simétrico ao de uma câmara que busca do mundo interior das personagens e das suas relações.
Assim, é pelo facto de a câmara se virar para dentro que as irmãs falam, comunicam e se representam por si mesmas. E quando elas falam todos os campos de possibilidade se ampliam. Para lá das sombras da passividade, há um mundo inteiro por descobrir. Há medos e esperanças. Há sonhos e incertezas. Há planos e projetos. Há música e prazer. Há jogo e reconhecimento. Há segredos e anseios. Há caminhos possíveis e experiências concretas. E há também atos de reza, não só a deus, mas também a Patti Smith. E a David Bowie, claro, essa estrela cadente que se faz aparição deslumbrante diante de Lux, para quem canta “Heroes”, no meio da luz e do fumo, numa das cenas mais emotivas e sublimes da peça, brilhantemente interpretada por Matilde Jalles.
Quase a chegar ao fim, as irmãs reúnem-se à volta das últimas páginas do caderno da escritora que está a escrever a sua história. A supresa é geral quando chegam à conclusão: “Então mas nós morremos no fim?!”. A pergunta contém, em si mesma, todo o sentido desta investida artística. Ao reconfigurar o ponto de vista, Lisbon Sisters transforma também todas as possibilidades de imaginação e de ação. Afinal, o fim pode ser apenas o porvir. Essa esperança impaciente e pulsional por descobrir o que estará para lá da porta.
Foto © Emma Saints
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Ficha Técnica
Texto e encenação Mário Coelho
Intérpretes e coautoras Ana Valentim, Carolina Dominguez, Júlia Valente, Mariana Gomes, Matilde Jalles e Nádia Yracema
Desenho de luz Manuel Abrantes
Cenografia e figurinos Cláudio Alves
Apoio à criação Cleo Diára e Pedro Baptista
Vídeo e Animação Miguel Cravo
Participação em vídeo Ana Valente, Cirila Bossuet, Mariana Guarda e Rita Silvestre
Fotografia Emma Saints
Composição Musical Filipe Baptista e Miguel Galamba
Produção Joana Costa Santos
Coprodução Centro Cultural De Belém
Residências de coprodução Cão Solteiro. Residências 120, Largo Residências, O Espaço Do Tempo
Apoios Fundação GDA, Oskar e Gaspar, Républica Portuguesa – Cultura | DGartes – Direção-Geral das Artes