Há dois depoimentos que permitem entrar de forma menos frívola neste primeiro romance de Mário de Carvalho, originalmente publicado em 1982 – após Contos da Sétima Esfera e Casos do Beco das Sardinheiras. Um pertence ao próprio autor, outro é assinado pelo crítico e ensaísta Manuel Frias Martins. Relendo (e por pouco reescrevendo), já em 1995, O Livro Grande de Tebas Navio e Mariana, Mário de Carvalho revelava, numa «Nota do Autor» aqui de novo publicada, os «traços estilísticos» (p.7) que provocaram a estranheza do escritor na maturidade. Entre outros recursos, estranhou o autor a «substantivação de adjectivos ou de verbos», «blocos de adjectivação fiada, inversão da ordem habitual», além de certos «funambulismos sintácticos» (id.). Talvez Mário de Carvalho tivesse em mente ocorrências como: «A noite daquele deserto riscaram-na gritares frouxos de mocho, gemeres roucos de pombo» (p.95); «silentes, serenos, solenes guerreiros» (p.44) É, portanto, com a tentação do «lápis normalizador» (id.) que o autor olha, a décadas de distância, para o seu primeiro romance.
Na sua prestação, Frias Martins aponta, sobretudo na recta final do seu ensaio, algumas linhas mestras captadas com a agudeza do grande crítico que o leitor atento tem diante de si – «o impulso mais enérgico para a escrita por parte deste autor radica numa intensificação do prazer da escrita enquanto jogo verbal ou enquanto reinvenção da narrativa literária pelo engendramento propriamente linguístico da estória» (p.20). Em suma, o que esta escrita centraliza é «a festa da palavra de recorte clássico ou de ocorrência rara no discurso comum» (p.21), porque, acima de tudo, «[se trata] de linguagem, de um soberbo domínio da linguagem. E trata-se sem dúvida de imaginação.» (id.) Eis aqui aqueles que são, talvez, os dois traços fundamentais deste Mário de Carvalho, necessariamente, peculiar em face do quadro geral da sua obra. Um autor em início de carreira com todo o sangue na guelra de um criador experimental, mas sem a sábia serenidade de um criador experimentado. É o próprio quem o sugere. E não há como deixar de lhe dar razão.
E, no entanto, poderá estar precisamente aí o maior apelo deste romance de Mário de Carvalho. A sua capacidade de invenção narrativa e «temática», a criatividade da sua expressão. No fundo, ambos os aspectos se conjugam. O tema da viagem, que percorre todo o livro, é servido por um estilo digressivo, que recusa fixar-se na norma gramatical, nas convenções frásicas, no dizer contemporâneo. Tal como o espaço do romance é algo como um não-espaço, fora do tempo, também a escrita acaba por ser uma certa forma de obliterar as balizas espácio-temporais. A sintaxe alatinada, as torções aplicadas à fluência normalizada, os achados vocabulares, são, afinal, outros tantos sinais de um investimento autoral forte, por mais que o futuro (o presente, já agora) o tenha contrariado, ou pelo menos mitigado.
O Livro Grande… tem uma estrutura tortuosamente circular. A viagem impele esse traçado que preenche os movimentos fundamentais do romance. Nas suas próprias manifestações, o romance reforça essa tendência para a órbita que vai ter ao mesmo ponto de partida. Os primeiros parágrafos do livro têm um foco que se repetirá mais de uma vez:
«Lembro agradado aquele meu trabalho na fresca livraria do convento de Saint-Saëns, entremeio das florestas luminoverdes da Jamaica.
Eu quotidiano me sentava numa carteira alta, de pau-preto, entre rimas de in-fólios e resmas de velhos manuscritos tisnados» (p.27).
Realmente, não muito antes do fim de O Livro Grande…, regressará esse casulo mágico dos ambientes livrescos:
«Quando nos meus passeios matinais, adregava passar-lhe perto do camarote, via-o pela vigia, todo curvado sobre uma mesa, alinhando notas sabias meio a cordilheiras de volumes encadernados, turbilhões de folhas brancas e escritas, compassos, sextantes, bússolas e barómetros, e muitos obscuros aparelhos náuticos, em grande desordem.» (p.226)
Esta é, enfim, uma recorrência que não deixará de manifestar-se, ainda uma outra vez, quando o romance estiver prestes a fechar-se:
«Mariana vem falando. Diz saber que há ao fundo uma porta pequena que dá para a grande livraria, onde se empilham empoeirados livros, não conhecidos em mais parte alguma.» (p.287)
É como se os livros funcionassem como a plataforma explicativa que vai deixar tudo claro. O garante sólido do sentido, a ancoragem para este vogar permanente. No entanto, não será assim. Os livros são um nítido motivo de fascínio, mas apenas adensam a incompreensão. Agitam mais a guerra das perguntas e das dúvidas, não trazem a trégua das respostas. Todo o romance se movimenta em regime de ocultação sem quase nunca interromper esse gesto de obscurecer. São vários os sinais de que a matéria de O Livro Grande… é, em grande medida, uma antimatéria, uma substância inabordável, misteriosa, fora das equações mais previsíveis – «partículas de ressequidos ectoplasmas outrora moradores comigo» (p.29) São notavelmente frequentes simulacros, fachadas que ocultam interiores que contraditam qualquer aparência – «Tratava-se de assaltar o colosso de Rodes, não o antigo colosso, descomunal, que um tremor de terra outrora derrubou e desfez em pedaços torcidos de bronze, mas uma réplica sua, em tamanho miúdo, que pousa seus pés sobre cada margem de córrego que verte pelas faldas do monte Taurus, em sítio escondido, de muito arvoredo.» (p.97) Curiosamente, a informação histórica – aqui, como em tantos outros momentos do romance – apenas acicata a indagação, intensifica o mistério e a incompreensão. No entanto, mais do que o fantástico, parece predominar um mundo suspenso, uma modalidade intermédia, ou intermediária, entre realidade e efabulação – «Não tardaram os primeiros sinais do lugre a petrificar-se. A petrificação de um navio sente-se antes de mais pelo modo dos sons.» (p.63) O Livro Grande… é o oposto quase exacto de certa personagem para a qual «tinha de existir sempre uma explicação já pronta. Nada de indeterminismos, nada de confusões, nada de perplexidades» (p,172).
Pelo contrário, neste romance tudo se indetermina e se confunde, tudo causa perplexidade. Partido de Lisbela – distorção efabulada de Lisboa –, o misterioso narrador parte em busca de uma Tebas que não há. Nem importa, talvez, que haja ou não – «Que Tebas é esta? Que Tebas não é esta?» (p.42); «Nem se situa, tão-pouco, em território conhecido dos velhos compêndios a Tebas de que falo.» (p.43) A cidade mítica será até ao fim uma espécie de mantra. Uma palavra tantas vezes repetida que deixa de possuir qualquer nexo de identificação geográfica ou outra – «Eu temo Tebas, é por isso que a procuro.» (p.205) Haverá sempre distorções que parecem estar prestes a mostrar ao leitor (e ao narrador?) um espelho onde reconhecer o seu mundo, mas a imagem devolvida é sempre inquietantemente próxima, mas nunca igual, à que se esperava – «Parti da Jamaica pra a cidade de Lisbela, minha terra. Mas uma outra cidade parada e parda, Tebas chamada, veio de mil formas interferir no meu curso.» (p.276)
As três partes do romance não parecem ser compartimentos estanques, mas agem como peças flutuantes, que vogam, também elas, ao sabor da efabulação e da fantasia do narrador. De «meia consciência» se fala, na transição da primeira para a segunda parte do romance. O navio que dá nome a esse novo segmento é descrito como «sombra gigantesca, negra, altíssima» (p.159). É nessa zona, precisamente, de sombra que respira, na sua vasta maioria, O Livro Grande… Tebas é o ponto de fuga; o navio, alegadamente, poderia levar até ele; Mariana seria a figura feminina que levaria o narrador, ascensionalmente, até à revelação. Mas, volvidos esses passos projectados, e ironicamente sugeridos pelo romance, tudo se contorce e distorce, e a cobra abocanha a cauda: tudo volta ao início. Como o Gama perante a Máquina do Mundo, também se esperaria que o narrador, por fim, colhesse as maiores revelações. Mas tudo permanecerá como um fruto da bruma, uma sugestão de sentido que apenas se insinua, sem revelação, sem apaziguamento. Tanto mais que a sucessão de hipóteses de cidade de que, por fim, o narrador se acerca – «uns chamam-lhe Camelot, outros Pasárgada outros dizem que era Tebas, ou lá o que é» (p.294) –, nada mais revela do que um novo simulacro, e este definitivo – «Àquela cidade [Lisbela] além ninguém chega (…). Dizem que está colada à linha do horizonte. Quanto mais um homem se aproxima, mais ela se afasta.» (id.)
O Livro Grande de Tebas Navio e Mariana é um romance de múltiplos recursos. A tradição cultural e a mitologia literária são adições certeiras às atmosferas de indeterminação que rodeiam o ar que se respira em todo o romance – «foi-me dizendo, a medir bem as palavras, que naquela área do navio se situavam os cárceres em que eram encerrados certos tipos de perturbadores da disciplina, magicamente irrequietos: Gilgamesh, Ulisses, Sindbad, Narezzin e outros, incompativeus com a harmonia naval» (p.185) Buscados anacronismos e referências topográficas deliberadamente paradoxais libertam o livro dos limites de uma verosimilhança estr(e)ita – «Lascas de âmbar liso, que eu partia com um grande maço semelhante aos usados pelos vendedores de torrão de Alicante, vendiam-se por três ou quatro táleres, assim o aspecto abonasse o comprador.» (p.94) Desde o início, mesmo as dimensões aparentemente mais palpáveis e terrenas, como os meios de transporte, se revelam imbuídas de um substrato irreverente e refractário à plausibilidade – «Como os restantes aviões, este não avançava. Sustentava-se alto nos ares e deixava correr o giro da terra.» (p.31) São logo as fundações da lógica física que se começam a pôr em causa. E o romance mais não fará do que intensifica-las. Daí que se avolumem as paisagens míticas, numa espécie de geografia da imaginação – «mares pastosos negros, ou abismos de magma, ou pradarias esmeralda perenes, ou lagos de mercúrio, ou o que quiserdes inventar» (p.51)
O estilo de Mário de Carvalho consegue ser sumptuoso, inventivo e denso – «As luzes passaram a iluminar frouxo, por maior intensidade que se lhes desse, no girar de bornes, e mostram o obscurecer por fina malha verde-negro que lhes corta a quentura e o brilho de alumiar, filtrado também o ar por granulado subtil aí pasmado.» (p.32) –, como é capaz de estabelecer contrastes precisos e energéticos, com a maior economia de meios – «Para lá do recife, é o mar prado esmeralda de sargaços brilhantes. É lúcido, é quente. Para cá, bancos de nevoeiro turvam o astro em compacta massa opala.» (p.38) Noutros pontos, afia o estilete do pormenor – «O deslizar lerdo da neblina permite raramente vista descoberta de cavaleiro completo, sua couraça laminada, elmo de cimeira plumado, rodela de bronze torvo» (p.84) –, ou mostra-se mestre de fórmulas de uma deliberada secura que tudo diz, com impecável concisão – «em torno de tendas enegrecidas, pobres, puídas, começavam a tremeluzir fogueiras, a cozinhar-se as magras refeições do lusco-fusco» (p.238). Gestos de escrita divergentes que revelam a amplitude técnica e estilística deste escritor.
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