Hoje indissociável da “nossa” recente glória no Festival da Eurovisão (criou os arranjos para “Amar pelos dois”), Luís Figueiredo já andava por cá há uns bons anos, com um trabalho consistente e de qualidade superior, com enfoque no Jazz. Dono de um estilo discreto e cuidado, de impecável execução, a sua participação num projecto é garante de qualidade, como se comprova ouvindo as colaborações mais recentes com João Hasselberg (a “solo” e com o dueto Songbird, projecto de versões Jazz de clássicos standard e da música portuguesa), também creditado neste álbum, com Nuno Dias (“Canções Pagãs”) e com Sofia Vitória.
Aliás, numa pesquisa mais atenta pelos créditos deste álbum, reconhecemos quase todos os grandes talentos do jazz luso actual, como Desidério Lázaro (saxofone tenor e soprano), João Moreira (trompete), João Neves e Rita Maria nas vozes, Mário Franco e João Hasselberg no contrabaixo, Marcos Cavaleiro e Bruno Pedroso na bateria…enfim, a lista prolonga-se, com um nível consistente de excelência. Mais recentemente, Figueiredo foi o responsável por todos os arranjos do espectáculo que Gisela João deu por várias salas do País, cantando clássicos de Natal, e acompanha Cristina Branco nos seus espectáculos, entre outros nomes que já não dispensam os seus préstimos.
Neste ambicioso e bem sucedido projecto Kronos/Penélope, composto por um álbum duplo, cada disco é identificado com uma das personagens mitológicas do título, reflectindo-se essa personalidade no tom do todo melódico. Trata-se do que se convencionou pomposamente chamar de álbum conceptual, no sentido de desenvolver uma ideia ao longo das suas faixas, com Luís Figueiredo ao leme nos arranjos e composições (com duas excepções, creditadas a Bill Frisell e Chopin), e com propositadas iterações (desde melodias a meros apontamentos), reforçando essa coesão, já fluída numa audição ininterrupta do disco.
Todo o álbum é um “recreio” para o pianista (finalmente, acrescentamos nós) dar largas ao seu talento na execução e composição, alternando entre a pura improvisação e a música escrita, com complementos de classe, como coros e uma secção de metais, a garantir densidade e impacto a instantes decisivos do disco, contrastando com momentos contemplativos e minimais, com acenos à dissonância e à música experimental (como no piano preparado com bateria em “Retrograde Amnesia VI”), à música clássica (com uma versão do conhecido Étude Op. 10 n.6 de Chopin, na óptima “A Song for the Ages”) ou ao Free Jazz e ao Soul em “Retrograde Amnesia IV””.
O tema é o Tempo, nas suas facetas múltiplas, e a sua perda através da amnésia, em que tudo se torna confuso e relativo. Os jogos rítmicos são a imagem dessas variações, tornando a escuta aprazível e surpreendente a cada faixa. Evocações cinematográficas e literárias são inúmeras, desde os títulos aos loops e momentos falados, que incluem a poesia do pai Nuno de Figueiredo em “O Tempo das Canções”, pela voz do actor Manuel Wiborg, mas também W. H. Auden ou Ítalo Calvino, por exemplo.
No lado mais feminino do álbum, Penélope presenteia-nos primeiro com as vozes, harmonias, o contraste entre a calmaria e a distensão rítmica de “Tempus Fugit” e o romance de “Love Songs Don´t Grow Old”. Uma tentativa de traduzir a mulher na sua complexidade.
O lado masculino Kronos, começa com o encontro da voz feminina com a masculina em “Tout les Matins du Monde” (referência ao filme homónimo de Alain Corneau) e é feito de intensidade e batidas mais poderosas, condimentadas com a contenção e alguma harmonia contemplativa, como na sequência (para ouvir em repetição) formada por “Tomorrow or Today” e “Amargas Cores do Tempo”, que muito provavelmente já conhecemos de cor. Depois, em “La Vida Se Gasta”, encontramos o discurso memorável de José Mujica no documentário Humans, do fotógrafo Yann Artus-Bertrand, seguido de um solaço de Desidério Lázaro, num daqueles temas que mostramos quando queremos apresentar o disco a alguém que ainda não o ouviu e, sozinho, vale a compra do CD. Encontramos não só jazz, como também canções, como a derradeira faixa “For Old Times´ Sake”, demonstrando que os rótulos só dão jeito mesmo para arrumar os cds na discoteca.
Colar a este disco clichés como “surpresa” ou “confirmação” é, não apenas preguiçoso e redutor, como errado. Luís Figueiredo fez o álbum certo que saiu no momento exacto (apesar de as composições já contarem uns anos), e a liberdade que teve na sua construção é perceptível da primeira à última nota, onde nada foi deixado ao acaso na construção desta casa sólida, onde repousa grande música tocada por músicos extraordinários, liderados com classe por um maestro sem medo de aventura. Um triunfo a todos os títulos. Não é o álbum do ano. É a bitola a atingir pelos álbuns portugueses nos anos futuros.
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