home Didascálias, TEATRO LULU – FITEI (TeCA, 15/6/2018)

LULU – FITEI (TeCA, 15/6/2018)

A peça Lulu, de Frank Wedekind, incorpora duas obras dramáticas – Espirito da Terra (1903) e A Caixa de Pandora (1904) – e constitui-se como uma das mais ambiciosas e importantes da sua carreira, um marco no desenvolvimento no teatro moderno. Escreveu-a num longo processo, entre 1892 a 1913, libertando-se de todo o sentimentalismo do teatro naturalista contemporâneo. Uma das peças anteriores de Wedekind, O Despertar da Primavera, escrita em 1896 (também encenada no Teatro Nacional São João em 2017, numa produção Teatro Praga/Centro Cultural de Belém/ Teatro Viriato, e cuja crítica podem ler AQUI) ficou conhecida pela sua abordagem polémica dos temas da sexualidade dos adolescentes, entre pessoas do mesmo sexo, da referência à masturbação e à violação. Posteriormente, Wedekind passou vários meses na prisão, devido a um poema em que criticava o Imperador Alemão e mais tarde lutou, com sucesso, contra uma tentativa de censurar a primeira edição de A Caixa de Pandora.

O dramaturgo alemão tinha como propósito revitalizar o texto dramático numa época de decadência humana. O seu fascínio pela transgressão dos padrões morais da sua época e a descrição de um ambiente de perversão, excluia quaisquer mensagens de valor moral nas suas obras, tais como as regularmente presentes nas obras do teatro realista e naturalista da época. Para além de retratar a crise das falsas moralidades de um período particular da história, Wedekind levanta também o problema universal do controlo dos instintos, do desejo e da sexualidade.

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Lulu não é apenas uma obra sobre uma mulher em particular, mas sobre todas as mulheres. Numa das obras que constitui LuluA Caixa de Pandora – Wedekind trata a sensualidade feminina como um poder sobrenatural, com a missão de trazer infortúnio ao mundo dos homens, embora se deva considerar o valor irónico desse título e do seu enredo. O outro título, Espirito da Terra, é adaptado do Fausto de Goëthe e retrata Lulu como uma força impossível de ser contida, maior do que qualquer consideração materialista.

Esta produção de Lulu pelo Teatro Nacional São João, a partir da tradução de Aires Graça, é a mais recente incursão do encenador Nuno M Cardoso no teatro de língua alemã de finais do século XIX e início do século XX, depois da encenação gloriosa de Os Últimos Dias da Humanidade de Karl Kraus. Voltou a juntar-se a Nuno Carinhas, desta vez responsável pela cenografia e figurinos nesta produção no palco do Teatro Carlos Alberto, integrado no FITEI (Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica) de 2018. Nesta excruciantemente contemporânea e extremamente necessária encenação de Lulu, o encenador Nuno M Cardoso começa a peça por se dirigir diretamente ao público, na personagem do Apresentador-domador de circo. Numa tentativa de criar uma reação simultânea de alienação e de resposta do público, Nuno M Cardoso convoca-o a ser uma testemunha activa da tragédia de horrores que se vai desenrolar, e na qual anuncia de imediato que a heroína Lulu morrerá no final.

No mundo de ambiguidade de Wedekind, em que todos se afundam, cada personagem vive na sua realidade hedonista particular, dominada pelo seu impulso em relação à sexualidade de Lulu, que fascina uma série de homens e mulheres, irremediavelmente atraídos por ela, começando pelo artista Schwarz que, para sua frustração, não consegue capturar o seu espírito. Dr. Goll, primeiro marido de Lulu, morre de ataque cardíaco quando a encontra nos braços do pintor, enquanto que o seu terceiro marido acaba por ser morto a tiro pela nossa protagonista. Depois de escapar da prisão, refugia-se em Paris, onde vive no meio da alta burguesia, com o apoio da condessa Geschwitz, que também por ela se apaixonou. Finalmente chegada a Londres, sem meios, acaba por ter de se prostituir, até encontrar a morte por Jack o Estripador, interpretado por Nuno M Cardoso, que não consegue lidar com a sua sensualidade, concluindo-se assim uma progressão de violência, uma espécie de erotismo até à morte, anunciado no inicio da peça pela personagem do Apresentador.

Ao longo da peça, a Lulu são atribuídos diferentes nomes por diversos homens que a tentam dominar: Nelli (a esposa), Mignon (a mulher-criança idealizada), Eva (a mulher fatal). Nesta encenação, Lulu é interpretada por Catarina Gomes, Sara Garcia e Vera Kolodzig, um excelente leque de atrizes, que incorporam e habitam a fragmentada essência feminina de Lulu. Esta multiplicidade encontra um paralelo nas percepções contraditórias que os homens têm de si, um caleidoscópio das suas fantasias, cada uma com seu nome, concretizações de uma idealização de Mulher, de criança a uma sedutora fatal, sendo Lulu todas elas e nenhuma.

“SCHWARZ: A Eva?

SCHÖN: Mignon foi o nome que lhe dei.

SCHWARZ: Pensei que se chamasse Nelli.

SCHÖN: Esse era o nome que o Dr. Goll lhe dava.

SCHWARZ: Eu chamava-lhe Eva…

SCHÖN: O verdadeiro nome dela, não sei.

SCHWARZ: Talvez ela saiba.”

As origens de Lulu, o seu nascimento e educação, são obscuras, resumindo-se à menção ambígua de um pai adoptivo. Lulu emerge das correias da sociedade civilizada, em que nunca se sente completamente integrada. O dilema entre uma Lulu apresentada como uma vitima da sociedade dominada por homens, e uma mulher cuja sexualidade é uma arma para dominar os homens, é deixado em aberto.

“LULU: A vida numa casa dessas nunca por nunca podia fazer feliz uma mulher como eu. Quando tinha quinze anos, talvez me tivesse agradado. Nessa altura, desesperava-me a possibilidade de nunca vir a ser feliz. Comprei um revólver e saí de madrugada a correr descalça pela neve funda, atravessei a ponte em direção ao parque, para me suicidar. Depois, por sorte, fiquei três meses internada no hospital, sem ver um homem à minha frente. Durante esse tempo, abriram-se-me os olhos sobre mim própria e eu reconheci-me. Noite após noite, vi nos meus sonhos o homem para quem fui talhada. E quando fui largada aos homens outra vez, já não era mais uma parvinha”

Ao longo desta produção, Nuno M Cardoso expõe a forte ligação do destino de Lulu ao destino assuntos financeiros das personagens, uma crítica muito contemporânea ao materialismo e ao capitalismo. Em 1903, Wedekind adicionou como lema ao Espirito da Terra as linhas de Wallenstein de Friedrich Schiller, no qual o poeta alemão menciona que “a pureza moral é impossível num mundo dominado por um espirito perverso que exige tributo ao homem para assegurar o domínio dos seus interesses materiais”. Em Lulu, observamos uma descrição da perversidade materialista, que começa em Berlim (no momento em que se tornava numa importante cidade capitalista), prossegue em Paris, (associada à corrupção financeira do Segundo Império), e termina em Londres, a grande cidade da globalização e dos mercados financeiros. Nesta produção, cada umas dessas três grandes cidades é retratada com grande imaginação, adoptando cenografia, luz e sonoplastia próprias, assim recriando, de forma muito contemporânea e dinâmica, o texto cosmopolita de Wedekind.

Em Lulu, Wedekind coloca em cena as tensões e contradições provocadas pelo choque entre a pulsão libidinal do desejo e a falsa moralidade burguesa. Em particular, no primeiro acto de A Caixa de Pandora, passado em Paris, observa-se a associação mordaz das especulações das bolsas de valores aos desejos libidinosos. Lulu fica horrorizada com a hipótese de se tornar uma objecto a ser vendido por Casti-Piani, negociante de acções e traficante de pessoas, para escapar à policia que a procura pela morte do seu marido.

Wedekind acredita que a Mulher, encarnada pela trágica Lulu, se encontra em contraponto à ideia de propriedade, subjacente ao domínio do homem.

Nesta muita recomendável produção de Lulu, que consegue tornar ainda mais acutilante o texto original de Wedekind, Lulu é representada como uma anti-heroína moderna que incorpora o conflito entre a sensualidade e vitalidade feminina e a norma social patriarcal (infelizmente tão actual na época de Wedekind como na de hoje). Este texto preconiza conceitos de emancipação e de liberdade feminina, mas ao mesmo tempo evade rótulos simplistas de personagem feminista.

A inesgotável vitalidade e energia de Lulu é a medida de todas as coisas nesta peça, tornando pequenos todos que estão à sua volta, tanto as personagens masculinas, como as falsas moralidades da época.  Dotada de uma força vital indomável, Lulu é, nas palavras de Wedekind, “não uma pessoa real, mas a personificação da sexualidade feminina primitiva que inspira o mal nas personagens que a rodeiam”. Neste meio dos interesses em que navega, Lulu é levada a excluir da sua vida conceitos como amor, fidelidade e gratidão, num contexto que reduz o amor e casamento a jogo de interesses, sem quaisquer hipóteses, sequer remotas, de salvação, como exposto pelo Apresentador logo no arrancar da peça.

“SCHWARZ: Em que acreditas então?

LULU: Não sei.

 SCHWARZ: Em que acreditas então?

LULU: Não sei.

SCHWARZ: Então não tens alma?

LULU: Não sei.

SCHWARZ: Já alguma vez amaste?

LULU: Não sei.

SCHWARZ: Ela não sabe!

LULU: Não sei.”

Sem nunca incorporar uma ideia de moralidade ou uma imagem de perfeição, Lulu é a encarnação da mulher que nunca perde a sua vitalidade original, e que escapa ao controlo da sociedade, acabando por ser punida com a destruição, assim como todos os homens que se relacionam com ela.

Foto ©João Tuna

Por defeito profissional, Jorge Ferreirinha escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.

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