home Didascálias, TEATRO Macbeth – TNSJ, 3/3/2018

Macbeth – TNSJ, 3/3/2018

Tudo começa num campo despido («an open place», diz o original de Shakespeare). Campo ambíguo, situado algures entre o terreiro manchado de morte e de mortos, ou o plano promissor de onde algo vai nascer. O solo é rubro, como sangue – o encenador Nuno Carinhas fala-nos, precisamente, desta «peça escrita sob o signo do sangue» (testemunho, como os seguintes, colhido no admirável «Manual de Leitura» distribuído ao espectador desta peça). Essa espécie de terra rubra ofusca o espectador, com uma luz perturbante, que irá sempre parecer que não devia existir. Contranatura, esta cor mancha os pés das personagens; o seu calçado, negro ou de outra cor, ostentará, ao longo de toda a peça, a marca desse vermelho-sangue. Segundo Pedro Sobrado, responsável pela dramaturgia deste Macbeth, o primeiro cenário com que o espectador se depara «parece um campo de batalha com corpos jacentes, mas também um caos primordial onde se formam figuras. Essa cena parece abrir uma zona de indistinção entre moribundos e nascituros, entre sepultamento e nascimento». Lugar carregado de possibilidades, saturado de expectativas, o palco em breve irá receber a força negra e terrífica das três bruxas. Cena prolongadamente muda, erotizada e contorcida com elementos cénicos que ainda vão atribuir uma carga mais informada ao todo. As três «Irmãs Moiras» procuram, procuram-se. Procuram definir a sua pele? Nos tecidos, nos panos, nas roupas, com que jogam, ainda antes de pronunciarem as suas primeiras falas – «Marcamos encontro pra quando?/ Quereis chuva ou trovões estalando?// Quando a barafunda se for,/ Quando ganhar o perdedor.» –, parecem tentar, esperar para ver aonde levará a sua indecisão. Porque estes seres são ambíguos: localizam-se entre o intensamente feminino e a insinuação do másculo. São mulheres, são mulheres levadas a um extremo de afirmação, de extrapolação do espartilho do género. No primeiro confronto que com elas tem, Banquo, companheiro de Macbeth, aludirá às suas «barbas» (p.37). Mas a ambiguidade do abominável trio estende-se ao geral da sua condição, também situada algures entre palpável e imaterial – «Nem parecem terrenas» (p.36), de novo Banquo. São, portanto, o veículo privilegiado para a descida de Macbeth ao abismo. Também ele se situa algures entre extremos: amante dedicado e assassino cruel; guerreiro fiel ao seu rei e sublevador do trono. O abismo que se abre diante dele parece-lhe uma ascensão, um começo de voo, mas apenas enterrará, mais e mais, o protagonista. A sede de sangue, a fome de poder, irão cegar, enlouquecer Macbeth. E é às bruxas que o futuro rei usurpador deve o vaticínio e a confirmação do poder que, ao princípio, estranha, mas bem depressa entranha.

Parece haver um prolongamento, uma confirmação, entre o jogo de tecidos e roupas das bruxas e as opções tomadas pela encenação. As transições, os apontamentos de pormenor, os efeitos de mostragem e de ocultação, são todos dados através de um renque de cortinas quase negras que correm, sobretudo perpendicularmente à cena – e, complementarmente, em eixo horizontal. A «perpendicularização» do palco confere-lhe a ilusão de profundidade, a sensação de estreitamento, a particularidade de um quadro, ou a intensificação da carga emocional de certa cena. Quando os «escorpiões» quase roeram a psique de Macbeth por completo, há um momento importante na peça e na encenação. Os convivas num banquete dado pelo casal Macbeth vêem-se separados do rei usurpador pelos dois blocos estanques: sanidade/loucura, mas também pela movimentação em palco de Macbeth. O rei traidor tem de se afastar da cena do banquete e «pairar» sobre ela, como se fosse um espectro enlouquecido, em face do fantasma do rei que assassinou. A opção passou por isolar Macbeth através do percurso em palco, mas também pelo avançar e recuar das cortinas, do extravasar da cena: Macbeth quase salta palco fora, consumido pela culpa, o quase remorso, a ameaça à sua virilidade e ao seu equilíbrio mental, já quase totalmente perdido.

Esta «simplificação» da cena arrisca, obviamente, no «naturalismo», mas colhe efeitos proveitosos na composição da volumetria cénica, na espessura dramática. Há caso, sem dúvida, em que «menos é mais». É possível que este seja um deles. Em poucas tragédias de Shakespeare, como nesta, estaremos perante um texto de tal forma flamejante, um tão complexo movimento retórico e poético que se sobrepõe a quase tudo – «Estrelas, escondei-vos,/ Que a luz não mostre o ermo do meu íntimo,/ Que a mão seja invisível – mas que o olho/ Não se escolha, no fim, ante o que teme.» (p.44) Note-se que o original é: «Stars, hide your fires;/ Let not light see my black and deep desires:/ The eye wink at the hand; yet let that be,/ Which the eye fears, when it is done, to see.», para se perceber que tipo de trabalho foi o do tradutor, Daniel Jonas.

Conforme defende o encenador, a «vertigem» deste espectáculo foi, como não podia deixar de ser «tecida na atenção às palavras eloquentes dos poetas (autor e tradutor), que desencadearam diálogos à mesa e sinalizações de passagem para a cena». Este Macbeth é um caso notável em mais do que um domínio. Entre essas dominantes, não será a menor a qualidade superlativa da tradução de Daniel Jonas que serve a encenação e que constitui um trabalho a todos os níveis de louvar: na fidelidade à letra e ao espírito originais, mas também na liberdade e inventividade das opções e das fórmulas escolhidas. Tragédia, entre outras, da palavra, Macbeth quase se diria poder abdicar de decorações. Basta pensar num objecto como o Macbeth de Welles, cuja gramática quase se cinge a uma paleta expressiva de escuridões, esquematizando torreões, paisagens naturais, espessando as névoas, projectando sombras sobre panos de fundo que semelham lençóis, no seu «minimalismo». O Macbeth de Carinhas e Sobrado – sem abdicar da «representatividade», dos trajos, por exemplo, nem de aspectos como o armamento, ou as cotas de malha que protegem os guerreiros – privilegia, em grande medida, a palavra, e os actores que a corporizam. Na sua pausa, a articulação de João Reis (Macbeth) favorece a terrível retórica de Macbeth, que rivaliza com um Ricardo III na enunciação dos seus próprios intentos e na reflexão acerca dos limites impostos às passadas pressurosas que dá em direcção à desgraça final. Lady Macbeth é essa descendente indirecta de Medeia, no ímpeto da sua decisão, na avidez resoluta e imparável, até na evocação dos poderes ocultos – «Vinde, ó espíritos/ Dos letais pensamentos, vá, castrai-me/ Do meu sexo, e enchei-me de alto a baixo/ Com firmeza cruel. Inchai-me o sangue,/ Barrai qualquer acesso ao remorso» (p.46). Emília Silvestre encarna a personagem como uma impecável falsa portadora da conciliação e do recato. Lady Macbeth sintetiza essa fragilidade enganosa que oculta um condão maior: o da ambição a qualquer preço. A sua aparência, ora vulnerável, ora indomável – oscilação dada pela actriz através de um subtil jogo expressivo de rosto e linguagem corporal –, sujeita ao poder masculino e capaz de se lhe superiorizar, é um sinal do seu poderio oculto.

No seu prefácio à edição da peça (Macbeth, Húmus/TNSJ, 2017), Daniel Jonas sublinha argutamente a importância dessa tensão, que pode, igualmente, ser uma tensão de géneros, como de papéis, de poder e dos seus simbolismos – «O que temos de fulgurantemente estranho na “peça escocesa” traduz-se, precisamente, num certo travestismo “mental” localizado no debate entre as personagens de Macbeth e Lady Macbeth. Esta é, a certo ponto, a figura mais máscula, modelo de virilidade, apelando a uma contenção dos receios femininos do primeiro e ao assumir de uma empreitada necessariamente masculina. Esta transfusão frequente de certas expectativas sociais atinge grandes temperaturas, quando não chocantes, caracterizando Lady Macbeth como uma figura absolutamente demencial e sinistra que infunde terror no espectador.» (p.15)

«Um magro elenco», afirma Pedro Sobrado, «exigiu (e dez robustos actores favoreceram) semelhantes manobras de diversão dramatúrgica». A esta reduzida e concentrada trupe, que dá corpo a um tão vasto rol de personagens, cabe uma palavra de louvor. Movimentações em cena, com golpes de espada, diálogos recatados e irosos são o terreno trilhado por estes actores. Sara Barros Leitão, por exemplo, viaja da carne ambígua da Terceira Bruxa para a concretíssima pele do Filho dos Macduff e do Jovem Siward, em cujo papel deve morrer às mãos de Macbeth.

O Macbeth levado à cena no TNSJ é uma colaboração notável entre as palavras de Shakespeare, a tradução de Daniel Jonas e uma encenação despojada, mas que potencia elementos simbólicos e altamente actuantes, como o vermelho do sangue e de todos os começos (e fins) e o negro da vestimenta do casal Macbeth, de todas as sombras projectadas pelos gestos cénicos, os artefactos do palco e os «efeitos especiais» dos «escorpiões» que povoam uma mente dilacerada pela ambição e a loucura.

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