home Didascálias, TEATRO Made In China – Mosteiro S. Bento da Vitória, 27/11/2019

Made In China – Mosteiro S. Bento da Vitória, 27/11/2019

Peça inaugural de uma nova fase da carreira de Mark O´Rowe, interrompendo o estilo monológico que caracterizava a sua escrita, Made In China é na aparência um confronto de dois pequenos criminosos, com egos que fervem em pouca água (Hughie e Kilby, interpretados por Manuel Nabais e João Cravo Cardoso, em perfeita sintonia e em topo de forma) e um aprendiz de feiticeiro com vontade de ascender na escada do poder, mas sem o físico e mentalidade para sustentar esse intento (o Paddy que Pedro Quiroga Cardoso agarra com o afinco e ingenuidade que equilibram toda a violência e testosterona que transborda dos seus compinchas). Mas entre raios e coriscos, ameaças, piadolas, porrada e calão para dar e vender, encontramos apenas seres em busca de uma saída para a vulgaridade das suas vidas, cada um com uma ideia bem diferente de felicidade.
Hughie é a imagem do samurai encarnado num bandido dos subúrbios da Irlanda. Duro, de poucas falas e narcisista quanto baste, é um dos capangas de Puppacat, chefe do “esquadrão” em que alinha com Kilby. Um acidente potencialmente mortal vitima a mãe, que sempre o ajudou e lhe inculcou valores como a lealdade e a honra, e fá-lo questionar o seu lugar no Mundo e a reavaliar o futuro, com os efeitos expectáveis por parte de quem conta com ele para o trabalho sujo que executa como sustento. Kilby é seu superior na hierarquia do esquadrão, mas por alguma razão (que acabamos por ver revelada) não tem o respeito que Puppacat dedica a Hughie, e guarda-lhe um mal disfarçado rancor, transformado em pequenas traições, missões inúteis e humilhações gratuitas. Paddy é amigo de infância de Hughie e Kilby escolhe-o como arma para atingir o orgulho de Hughie, tentando virá-lo contra o este através de promessas de fama e fortuna. Mas nada corre como planeado, e estas três vidas serão mudadas de forma irreversível por decisões e acções tomadas com o sangue a ferver.
O verdadeiro dinamite desta dramaturgia está nos diálogos. Plenos de ritmo e selvagens no papel, graças à brilhante tradução de Francisco Luís Parreira (recentemente editada, juntamente com duas outras peças de Mark O´Rowe, pela Húmus e pelo Teatro Nacional São João, no âmbito da colecção de textos teatrais em que são parceiros, já com dezenas de títulos de excelência), ganham tridimensionalidade e profundidade através do desempenho antológico do elenco, fiel a cada didascália e preciso nas marcações, insuflando cada deixa de um surpreendente realismo, comicidade e garra, como se nunca tivessem representado outro papel. O facto de o espaço cénico se confinar a uma sala durante os dois actos da peça, empresta à acção ainda mais urgência e ansiedade, limitando a raiva, o medo e a fisicalidade até ao ponto em que mais nada resta que não a explosão, preparada e detonada pelo nosso samurai Hughie, numa purga final purificadora e sangrenta, iniciática para o pobre Paddy, digna de um qualquer filme de Chuck Norris ou Bruce Lee que os três idolatram. O encenador Pedro Frias, também actor experiente, tem o seu dedo bem presente no desenrolar da acção e na direcção de actores, contribuindo decisivamente para a fluidez da acção e potenciação dos desempenhos.
O poder de sugestão do texto é outra das suas mais valias, porque abdicando da representação física das cenas mais chocantes (que incluem empalamentos, violações e outras violências afins), não deixa de semear na imaginação do espectador a visceralidade dos eventos evocados, convocando-o não só como testemunha involuntária, mas também cúmplice de actos inimagináveis mas essenciais na definição da essência destas três existências, retratadas com o vigor e complexidade exigíveis para que as suas acções se tornem consequências e não meras gratuitidades estéticas para acentuar o efeito dramático das cenas. Acaba por ser precisamente pela via do choque que o público cria real empatia com personagens que nunca possibilitariam sequer a sua proximidade na realidade, tomando consciência das suas vulnerabilidades e faltas e do ascendente destas sobre a sua personalidade e biografia. São escravos do meio que os pariu, mas chegam-nos com a possibilidade de sair porta fora e começar de novo, como uma folha em branco, com alguns vincos, ainda capaz de receber um rascunho de vida.
Um espectáculo inesquecível, por uma equipa capaz de se colocar ao serviço do texto e da sua originalidade. O Teatro como deve ser.

Made In China vai estar em cena no GrETUA nos dias 28 a 30 de Novembro (Universidade de Aveiro)
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