Magma ou a rebeldia possível poderia ser uma alternativa ao nome da reflexão que Flávio Rodrigues apresentou no Teatro Carlos Alberto de 15 a 17 de fevereiro. Um solitário entre objetos de guerra que podem ser um balão branco ou um pano se com eles fizermos crer que estamos num palco de guerra. A repetição das ações – encher esse balão de ar, rodar os panos sobre a cabeça – convoca-nos para o nosso lugar enquanto espectadores de uma guerra na qual participamos ativamente na ausência. No silêncio perante as atrocidades a que obedientemente cedemos na televisão todas as noites, no jornal que folheamos tranquilamente sem querer ver que uma guerra é sempre nossa, que para estarmos em estado de paz alguém tem que estar em guerra.
A partir da noção de mapeamento, Flávio joga com a cor do conflito – o verde-escuro militar – e o silêncio atroz que predomina o ruído inócuo das notícias sobre a violência executada sobre inocentes. O mapeamento é sobretudo o de objetos que de tão simples são manipuláveis porque têm o potencial de demonstrar sempre a verdade. Um elástico voltará sempre ao lugar de partida se o soltarmos, o traje militar de soldado que cada um de nós enverga não desaparece se sobre ele colocarmos roupagens várias até ocuparmos um espaço exagerado de presença pública como nas passarelas de moda instagrâmicas, facebookianas ou tinderescas. O momento em que Flávio se “engorda” com as roupagens coloridas que nos sufocam no quotidiano é provavelmente o mais claro neste aspeto. Quando as cores desaparecerem, voltamos ao traje de guerra. Porque, tal como o elástico volta ao início, não é por não a querermos ver que ela não existe. Guerra é magma, fluido subterrâneo que atormenta quem está à superfície, sem saber quando nos tocará a nós ser invadidos por ele. Mas caminhamos sobre ele. Em linha reta, tal como Flávio, em mais uma repetição. Três vezes: três o elástico, três o balão, três o pano. Que guarda em sacos, o recipiente que nos permite demitir-nos de ver. Avançamos então nessa linha reta, com os problemas escondidos dentro de sacos, mas não saímos dela, não temos a liberdade para isso. E, portanto, obedecemos. Ao sabor da vivência segura, que se acha livre, mas que não o é. Enquanto houver guerra, não somos livres, vivemos no limite da selvajaria, que nos atrai para ela, embora não a possamos tocar.
A utilização do palco sem a palavra, apenas a partir do olhar animalesco de Flávio, de quem obedece a um grito de guerra, pareceu-nos mais produtivo do que a passagem, já para o final, ao texto em formato robótico, que anuncia distopias presentes ou futuras pela reificação do corpo humano. Ainda assim, vale a pena parar durante uma hora para assistir a este “Magma”, sobretudo porque, como Flávio Rodrigues nos demonstra, ninguém está disposto a pensar a sua condição de soldado na atualidade: a participação na guerra pela indiferença.
Foto © Susana Neves/TNSJ
Por defeito profissional, Luis Pimenta Lopes escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.
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