home Antologia, LITERATURA Marca de Água – Sobre Veneza de Joseph Brodsky (Relógio D’Água, 2018)

Marca de Água – Sobre Veneza de Joseph Brodsky (Relógio D’Água, 2018)

A reedição de Marca de Água lembra, de forma quase irresistível, as palavras de Camilo Castelo Branco no pórtico de um dos seus livros: «Eis aqui um livro necessário.» Mas, ao contrário do que fazia o Penitente, não há aqui rasto de ironia. O livro de Brodsky é todo um género à parte. Marca de Água faz parte desse escasso número de obras que redefinem, desgovernam, ou desprezam as regras estabelecedoras do cânone para determinado género. Livro de viagens, sem dúvida, visto que o seu fulcro é a deslocação no espaço, e Veneza constitui o palco de todo o seu labor; mas tudo o resto é, quase ponto por ponto, desmontar os contrafortes da literatura de viagens. Sem que haja uma tentativa demasiado estrídula de o fazer, Marca de Água procede como se estivesse sempre noutros patamares, sem qualquer reverência para com os códigos, os protocolos, as práticas que consagram a tradição. Mesmo quando parece conceder nesses convénios, há sempre sedimentos, impurezas que afectam a mistura, e tudo se torna uma viagem indisciplinada que permite fugas em todas as direcções menos a exclusividade – «Há muitas e muitas luas, um dólar eram 870 liras e eu era um homem de trinta e dois anos. Também o mundo era mais leve, dois mil milhões de almas mais leve, e o bar da stazione a que eu chegara nessa fria noite de Dezembro estava vazio.» (p.9)

Brodsky faz questão de se posicionar à distância da ficção, isentando-se das correntes que o pudessem prender ao ofício da efabulação – «Senti-me zonzo, por momentos; mas, não sendo romancista, ignorei a opção e meti por uma porta.» (p.47) E, no entanto, rodeia a sua Veneza de uma construção absolutamente romanesca. A chegada decorre em atmosfera convenientemente misteriosa; o viajante tem por cicerone uma mulher que encarna a sedução de todos os mistérios e das histórias por resolver, como se estivesse velada pelo halo de inquietude que turba aquele que viaja. E todo o périplo do Brodsky «turista» se deixa revestir desse lastro imaginativo e lírico que torna tão irresistivelmente questionável a outra negação de Brodsky (o escritor nega, a cada passo ser algo que lhe apetece não ser, mas que a sua escrita parece contrariar) – «Não sou um homem moral (embora tente manter a minha consciência em equilíbrio) nem um sábio; não sou um esteta nem um filósofo. Sou apenas um homem nervoso» (p.21). Trata-se de um curioso mecanismo de subversão pelo auto-retrato, e uma forma de criar uma sucessão de máscaras, espelhos e imagens, constantemente difundidas e devolvidas, que bailam numa coreografia hipnotizante para os que delas ficam cativos. Para quem «não é» um homem moral, Brodsky pontua a sua escrita de poderosos envios nesse sentido, desfiando-os como se falasse de si para consigo, e os ventilasse nos intervalos das suas observações – «Talvez a melhor prova da existência do Todo-Poderoso seja o facto de nunca sabermos quando vamos morrer. Por outras palavras, se a vida fosse um assunto exclusivamente humano, receberíamos ao nascer um documento, ou uma sentença indicando exactamente a duração da nossa presença aqui» (p.32) Por outro lado, é especialmente curioso notar, por exemplo, como Brodsky, o «não-esteta» põe de parte, com aparente repulsa, Morte em Veneza, quer o filme, quer o livro. Uma informação tanto mais sedutora, quanto a sobrecarga estetizante que avassala ambos os objectos – o de Mann e o Visconti – parece, muito pelo contrário, possuir uma afinidade irresistível com os procedimentos do autor russo. Mesmo quando afecta cinismo, ou cava fundo o fosso que o separa de um passado mais ou menos longínquo – «Nesse tempo o estilo estava para nós associado à substância, a beleza à inteligência.» (p.15) –, o olhar de Brodsky é iminentemente marca de estesia, de uma fruição que se transplanta sumptuosamente, para a escrita – «No Inverno, os leões alumiam os nossos crepúsculos.» (p.73).

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Dizer «olhar» em relação ao Brodsky de Marca de Água é uma força de expressão, tanto quanto é uma constatação plena – «a sensação telescópica de entrar em contacto com a infinitude celular da existência de um outro corpo» (p.31) A visão é o sentido primordial para o autor, que o eleva à categoria de personagem, não se dirá principal, mas seguramente de grande importância. Veneza é, para Brodsky, o terreno de eleição para este sentido, por ele cantado amorosa e admirativamente – «o olho, o nosso único órgão interno visível, pisciforme, pode aqui nadar deveras» (p.27) –, enquanto ponto de ligação privilegiado entre o sujeito e o seu objecto – «Ao fim de algum tempo – ao terceiro ou quarto dia aqui passado – o corpo começa a considerar-se como mero portador de olhos, como uma espécie de submarino ao serviço do seu periscópio pronto a dilatar-se ou a semicerrar-se» (p.39). Uma elevação que conduzirá Brodsky a propor, revendo pressupostos dos mais vários, entre os quais estão as teorias de beleza na Idade Média: «Somos aquilo para que olhamos» (p.29). Essa capacidade de olhar para lá da paisagem, de vê-la, mas de não ficar preso à tentação de pintar uma simples ilustração, é essencial para a estirpe de literatura de viagens que Brodsky aqui produz. Mesmo se descreve o «oleado negro da tona de água» (p.12), caracterizou, escassas linhas antes, a infância como «escola de insegurança e desamor-próprio» (p.11).

Numa superfície como Veneza, o olhar detém-se, naturalmente, na água, «imagem do tempo» (p.38) e ponto de partida para algumas das mais detidas e proveitosas digressões de Brodsky. Elemento vivo e espelho ilusório, a água fá-lo recuar nas suas considerações e remontar a uma essencialidade anterior a tudo, mesmo à paisagem encantatória da Sereníssima – «Há algo de primevo nas viagens sobre a água, mesmo por distâncias curtas.» (p.17) Como se água que bordeja a cidade fosse um apontamento da sua qualidade intemporal. Paralelamente a esse marco vivente, que é o elemento aquático, estão os espelhos, propriamente ditos, que constituem outro dos enlevos do autor – «De divisão para divisão, à medida que avançávamos ao longo da enfiada de salas, via-me cada vez menos nesses espelhos emoldurados, recebendo de volta cada vez mais trevas.» (p.47) Imagem por excelência do duplo, os espelhos traem a oficina do escritor, obrigam-no a reconsiderar(-se), a reestabelecer fronteiras, a repensar perspectivas e ângulos. Água e espelhos são metáforas vivas de uma cidade que suscita a exaltação do olhar do autor.

Marca de Água é a obra de um esteta, de um homem nervoso e moral, um sábio filósofo. Ao negar-se a encarnar esses papéis, Brodsky está a criar uma de muitas máscaras que a sua escrita ergue diante do leitor. Máscaras que são artifícios, artefactos de uma prática de escrita lucidamente consumada. É um jogo de esconder e revelar em que o escritor recua para os bastidores, promove o espectáculo de uma cidade plena de teatralidade; mas em que, avançando até à boca de cena, adopta a espectacularidade de Veneza, como seu cantor e sua personagem.

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