“Cabeça-de-cartaz” do Fórum do Futuro 2018, um festival de conferências que, ano após ano, vem crescendo em qualidade e diversidade temática e do painel de convidados, Margaret Atwood (n. 1939) falou da presença da mitologia na sua obra, mas também da escrita que a celebrizou e deu sentido à sua vida, da família e das memórias que a formaram como mulher e ser humano único e irrepetível, estendendo a abrangência da sua palestra aos pilares ideais de qualquer escritor e artista consistente.
Com uma intervenção bastante morna em termos de dinâmica e relevância de conteúdos, a canadiana soube ganhar o público num crescendo irresistível, pontuando a sua intervenção com comentários irónicos e cómicos, que fizeram as delícias das centenas que esgotaram o Teatro Rivoli. Parte do nosso desapontamento parcial com a intervenção, prende-se com o facto de conhecermos já muita da sua biografia (parte da qual está bem descrita e ilustrada no documentário abaixo), o que não a torna menos interessante.
Filha de um entomólogo ao serviço do governo canadiano, passou a infância em lugares inóspitos do seu Canadá natal, especificamente a gélida e agreste Ottawa, entre outras cidades, onde o isolamento da civilização e a ausência de electricidade ou qualquer tipo de tecnologia era compensada pelo contacto constante com a Natureza, pela imaginação e criatividade que esse vazio quase forçava, criando hábitos de escrita desde tenra idade. Ainda antes dos dez anos, escrevia poesia, pequenas peças de teatro e banda desenhada e, até aos onze anos, era ensinada pelos pais em casa e nunca tinha frequentado um ano escolar completo.
https://vimeo.com/235634835Nas suas palavras, escolheu a literatura porque nunca lhe disseram que não podia ser escritora. O seu primeiro livro “oficial” foi Double Perséphone, de 1961 (Perséfone era deusa das ervas, frutos, flores e outros vegetais, esposa de Hades), colectânea de poesia de que, confessa, gostaria de ter mais feito mais cópias, já que as que fez artesanalmente hoje já estarão desintegradas. Mas desde os rabiscos mais juvenis, a mitologia já constava do imaginário de Margaret. Aquando da chegada ao secundário, conhecia já a Ilíada e a Odisseia, assim como os contos dos irmãos Grimm e outros congéneres, o que se revelou deveras útil para a carreira que escolheu abraçar. O lastro destes clássicos estende-se por toda a sua obra, desde a ficção mais convencional à chamada ficção especulativa, de que foi cultora de excelência, com destaque para o fantástico The Handmaid´s Tale de 1985 (traduzido como A História de uma Serva, em 2013 pela Bertrand Editora).
Recém editado por cá como A Odisseia de Penélope (Elsinore, 2018), Penelopiad foi a sua primeira incursão mais directa na mitologia, com uma reinterpretação da Odisseia de Homero na perspectiva de Penélope, a personagem que esperou o regresso de Ulisses, rejeitando todos os pretendentes e fingindo urdir um sudário para o pai do amado, na promessa de que se casaria assim que o concluísse. Esta tendência na obra da canadiana veio a repetir-se, em livros fundamentais da sua já longa bibliografia, como O Assassino Cego (que em 2000 lhe granjeou o Booker que tardava em ganhar), Oryx e Crake (2003) e os outros dois volumes da trilogia MaddAddam (O Ano do Dilúvio de 2009 e Maddaddam de 2013).
Atwood acaba por provar na sua conferência a importância dos clássicos da Antiguidade, (assim como outras fontes essenciais como os episódios bíblicos, mitos nórdicos e dos indígenas americanos e as fábulas dos Grimm) na sua formação como escritora e defende serem o ponto de partida para quem se proponha dedicar-se à escrita, por conterem as fundações de qualquer forma de ficção. Complementou estes alicerces com uma adolescência rodeada de ficção cientifica, altura que coincidiu com a idade de ouro do género, com gigantes como Ray Bradbury no topo da sua genialidade.
A canadiana abriu e encerrou a sua intervenção invocando a Sibila, a quem Apolo concede um desejo e ela pede a vida eterna, esquecendo-se de pedir a eterna juventude. “Nada sobrará de mim para além da voz” é o fim da sua história, e também da intervenção da escritora, numa clara alusão à arte da escrita e ao desejo oculto de qualquer escritor: eternizar a sua voz bem para além do perecimento físico. Margaret conquistou esse desiderato com grande mérito, com mais de 60 livros, entre poesia, ficção e não-ficção, e um talento desmedido para contar histórias desafiantes e atractivas.
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