“Too late to tell you I’m gonna build a world around you”, canta Marlon Williams, naquela que é a primeira música que arranca ao público aplausos entusiastas, lançada como single através de um divertido vídeo em que dança, chuta castelos de areia e, apesar do coração quebrado, ainda se mexe. As canções do belíssimo e melancólico Make Way for Love, álbum premiado e vastamente elogiado pela crítica, giram todas em torno desta premissa: chegar tarde para recuperar a amante perdida, perdê-la, tentar ganhá-la e seguir em direção ao amor de novo (poderíamos dizer que é um novo The Boatman’s Call, de Nick Cave, onde este chora (publicamente) o fim da relação com PJ Harvey na forma obsessiva, amorosa e igualmente cruel que só ele consegue fazer). Ao contrário do que acontece com o amor, Marlon entrou em palco a horas, com um profissionalismo e segurança reservados a cantores com mais experiência. Apesar da tenra idade, não falha uma nota ou acorde e consegue carregar o concerto até ao fim, num crescendo de emoção e intensidade, que culmina num momento de catarse em que, de joelhos, se atira imaculadamente às notas mais agudas, numa versão de Portrait of a Man, de Screamin’ Jay Hakwins. E que homem é este, pintado a óleo em vários tons de azul, oriundo de uma pequena cidade na Nova Zelândia, que nos chega como um eco de outros tempos?
A cortina de veludo vermelho da sala do Theatro Circo (segundo Marlon, demasiado bonita para canções ciumentas e vis como “Can I Call You”) sobe para revelar o cantor sozinho em palco ao piano. A meio da segunda música, Beautiful Dress, uma banda de três músicos junta-se ao cantor, para desenhar um cenário musical de guitarras ora mais rockeiras, ora um pouco mais tropicais, a lembrar as praias e o surf, sintetizadores que surgem para pontuar a música como pequenas luzes brilhantes, violinos country e coros que se aliam à voz de Marlon, com resultados ora oníricos, ora assombrosos, como acontece na já mencionada “Can I Call You”, um honesto manifesto sobre o ciúme, essa coisa terrível, em que cantor e coro dialogam como partes de uma conversa de telefone, que é também um monólogo sem qualquer resposta da sua pretendente.
Parece que é quando canta que Marlon é mais feliz, e mesmo que as suas canções sejam os restos de relações falhadas e o testemunho de um coração quebrado, o concerto nunca perde força nem se torna triste. Em vez de um lamento, é uma road trip intimista e nostálgica, onde a cada paragem se encontra mais uma amante. Marlon está no palco como em casa e enquanto passa da guitarra para o piano ou abandona os dois para deslizar palco fora, numa dança um tanto desajeitada, vai puxando a mullet brilhante para trás e fala com o público, confiante e cativante em partes iguais. Por convidar ao regresso aos Estados Unidos dos anos 50, dos diners e dos honky tonks e dos cantores que cantam em suspiros, Marlon sugere a comparação fácil: ele é um Roy Orbison mais cool, um Elvis menos espalhafatoso mas com um jogo de anca invejável ou ainda um Hank Williams menos trágico. No entanto, o toque de Midas do jovem neo-zelandês prende-se com a forma particular como se apropria do universo americano do country, do folk e dos crooners, do Great American Songbook e baladas tradicionais, e o traz para os tempos de hoje, numa nova roupagem e com uma voz renovada.
Na dançável “Vampire Again”, liberta-se da guitarra e dança, sendo impossível não querer fazer o mesmo (o que parece não ser permitido, não fosse este o Festival Para Gente Sentada). O cantor parece efetivamente a tal criatura fantástica, que conserva dentro do corpo jovem, enxuto e belo, uma personalidade de séculos, com raízes musicais num passado distante. Marlon cantou ainda, agora sozinho, a triste balada que gravou a duas vozes com a igualmente talentosa e promissora Aldous Harding, “Nobody Gets What They What They Want Anymore”, um hino à relação amorosa falhada entre os dois, em que o desespero (“What am I going to do when you’re in trouble/And you don’t call out for me?/ What am I going to do when I can see that you’ve been crying/ And you don’t want no help from me?/ Baby, I can’t separate us out anymore”) dá lugar a um coro um tanto naïve e brincalhão de sintetizadores e vozes, roubado a uma banda como The Byrds. Logo de seguida, ouve-se “Make Way For Love”, para dançar devagarinho (e o que se pode seguir ao desamor senão mais amor?) onde a voz de Marlon, plena e cavernosa, se aproxima ainda mais dos ditos crooners. Destes escreveu-se que a forma íntima de cantar, como se sussurrando ao microfone, apenas era possível dado o advento da música elétrica e o aparecimento do microfone. Como que para contrariar a crítica, a dado momento Marlon afasta-se do objeto e canta sem ele, projetando a voz de forma a que esta preencha todos os recantos e corações da sala, salientando o que já era visível deste o início do concerto: os anos de treino no coro católico e as aulas de canto clássico na breve passagem pela universidade, deram-lhe uma voz poderosíssima, capaz de vaguear entre agudos e graves sem esforço.
O encore traz Marlon a palco acompanhado apenas por uma guitarra acústica, para uma encantadora versão de “When I Was a Young Girl”, canção de Barbara Dane imortalizada por Nina Simone (e por Feist), onde a simplicidade da interpretação não reduz a intensidade que marcou o concerto, mas reforça o poder vocal do cantor. O coração quebra-se, o corpo acaba-se e o inferno é o único destino (palavras da canção). Ainda assim, Marlon sorri e lança-se a outra canção onde dá ao público tudo o que tem. Depois despede-se, perante uma plateia completamente rendida ao charme deste jovem rapaz. É fácil explicar o sucesso de Marlon: tal como o (des)amor, que precisa sempre de mais um corpo que lhe sirva de alimento, a música, as artes visuais, o cinema, a literatura e o teatro vão sempre servir-se das dores do coração para levantar um espelho em frente a um público, que, mesmo que já conheça o desfecho das histórias de amor, se apaixona, uma e outra vez. E desta vez, foi por Marlon.
Foto © Karin Rasch
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