Esta semana, passou por Portugal um dos realizadores/produtores mais destacados e incontornáveis do cinema e TV norte americanos: Alan Poul (1954). Dono de um palmarés impressionante (um Emmy, um Globo de Ouro, dois prémios do Producers Guild (sindicato dos produtores), três prémios Peabody e quatro prémios GLAAD) e de um trabalho que se destaca pela qualidade superior e atenção ao detalhe, Poul protagonizou uma pequena digressão por escolas artísticas de Lisboa, Porto, Caldas da Rainha e Covilhã, que terminou na Escola das Artes – Som e Imagem do Pólo do Porto da Universidade Católica, onde tivemos o privilégio de o ouvir e entrevistar. A ocasião, de todo inédita, surgiu integrada no American Film Showcase, um programa mundial de diplomacia cinemática (presente em 40 paises), gerido pelo Departamento de Estado dos EUA e pela Escola de Artes do Cinema da Universidade da Califórnia do Sul (promovido em Portugal pela Embaixada dos EUA), que leva especialistas e cineastas a apresentar filmes e workshops, a que se associou o FEST (Festival Novos Realizadores Novo Cinema).
A sessão começou com a exibição de “The Art of Television”, realizado por Charlotte Blum e Vincent Gonon, um curto e cuidado documentário acerca dos detalhes do trabalho de um produtor televisivo, focado em Alan Poul, nos eventos marcantes da sua carreira e nos métodos de abordagem aos projectos em que se envolve. Na conclusão, Poul reconhece existir uma linha transversal às séries em que se envolveu: a centralidade do enredo na unidade familiar e nas suas dinâmicas e conflitos.
A masterclass, que juntou cerca de duas centenas de pessoas no lotado auditório da UCP Porto, teve por tema a TV americana nas últimas duas décadas. Foi dividida em duas partes, iniciadas com uma frase-lema: ”TV is the new independent film” e “There is simply too much tv”. Alan Poul começou por demonstrar a inversão completa do objecto do cinema vs. o objecto das séries. O cinema tinha por base enredos mais profundos e complexos, personagens mais densas e uma história que exigia acompanhamento atento do início até ao final. Nas séries, cada episódio subsistia por si, sem qualquer ligação aos restantes. Apesar da época dourada original da TV americana ter ocorrido nas grandes companhias com alcance nacional (ABC, CBS e NBC, as “networks”, hoje acompanhadas pela FOX e pela CW por exemplo) na década de 50, com o advento da “pay cable” (TV por subscrição, sem restrições de conteúdo porque não precisava de publicidade para subsistir, cujo exemplo cimeiro de sucesso foi a HBO), o paradigma alterou-se. Com séries como The Sopranos e Six Feet Under, as personagens passaram a ser multidimensionais e verdadeiramente desenvolvidas com rédea solta, num argumento contínuo, dividido por episódios. Ao cinema de hoje, como facilmente se afere pelos números de bilheteira, ficaram reservados os “genre movies”, anteriormente conhecidos como “B movies”, mas hoje a regra dominante (p.ex.: os filmes de super-heróis).
Na segunda parte, Poul serve-se da frase bombástica do CEO da FX Networks, para demonstrar a mudança de paradigma que as já referidas “pay cables” (numa fase inicial), mas, de forma mais evidente e massiva, as plataformas de streaming com base única na World Wide Web, como a Netflix (actual empregadora do orador), a Amazon e a Hulu, introduziram no panorama audiovisual americano e global. A explicação é simples: ao disporem de uma base financeira virtualmente ilimitada (fornecida pelas poderosas empresas tecnológicas que as detém), produzem conteúdos em quantidades impossíveis de enfrentar, sem necessidade de episódios-piloto, de audiências, de lucro ou de restrição nos conteúdos e nos horários de divulgação e acesso às mesmas, num esforço concertado para, através da disseminação das novas séries, anular o modelo obsoleto das tradicionais grandes companhias, que emitem pelas vias tradicionais. Com as vantagens deste panorama (a diversidade de escolha, o sangue novo e as ideias frescas e arriscadas, as infinitas possibilidades), surgem também os inevitáveis reveses, como a qualidade bastante díspar (fruto da inexistência de um piloto e do um processo prévio de desenho abrangente e holístico da série), a desintegração do cinema independente e o risco de implosão eminente do modelo de negócio, insustentável a médio prazo.
A entrevista que gostaríamos de ter feito, cuidada a abrangente, no Festival de TV de Copenhaga, aquando da estreia da série “The Newsroom” em 2012.
Em conclusão, após uma exposição detalhada do quotidiano de uma “writers´ room” e da importância deste já histórico veto/controlo interno constante e rigoroso (em conjugação com a hierarquização de tarefas) na qualidade das séries americanas, Poul apoia-se, como um consolo e redenção final, no facto de ser ainda essencial a qualidade da escrita para que uma série resulte e seja objecto de louvor e reconhecimento, independentemente da conjugação de outros factores óbvios.
Entre os argumentos, e na entrevista que gentilmente nos concedeu, o produtor foi detalhando elementos interessantes e peculiares da sua carreira e biografia, como o facto de ter passado pela composição de teatro musical e a sua formação académica ser em literatura japonesa, graças a um acaso na adolescência (um programa académico similar ao Erasmus europeu, mas em que não havia a possibilidade de escolher o destino) que o levou ao Japão, onde se apaixonou e especializou na fascinante cultura nipónica que, mais tarde, acabou por ser a sua porta de entrada no cinema, com o convite do gigante Paul Schrader (que tem no currículo títulos como Taxi Driver, Raging Bull e American Gigolo) para produzir o seu biopic sobre o escritor Yukio Mishima, estreado em 1985. Sete Palmos de Terra é destacado como o projecto em que tudo se conjugou para ser um dos momentos mais felizes e compensadores da sua carreira, desde a perfeita simbiose com Alan Ball (a quem cabia a parte criativa, ficando a concretização para Poul), à equipa que se manteve inaltarada ao longo das cinco temporadas, criando um raro (e hoje irrepetível) ambiente familiar e harmonioso.
Quanto aos projectos para o futuro, Alan Poul referiu uma série já em preparação para a Netflix, passada em Paris, cujo enfoque será o multiculturalismo e a realidade quotidiana de personagens múltiplos, com a peculiaridade de ser multilingue e um projecto mais pessoal, que vem desenvolvendo há uns anos, mas para o qual ainda não reuniu o financiamento necessário.
Os nossos agradecimentos à Sara Machado, pela disponibilidade e cuidado, e ao Dr. Nicolau Andresen, em representação da Embaixada dos E.U.A., pela cordialidade e simpatia.
A reportagem da RTP sobre o evento está disponível AQUI.