Quem disse que não pode haver humor no meio da Guerra? Não é humor negro, esse é para os idiotas sem escrúpulos (penso nuns quantos). É Kurt Vonnegut. No seu livro Matadouro 5, a cada embate com a expressão “É a vida” pensamos na morte de outra maneira. A repetição engata o leitor e produz o esquecimento da própria morte. A repetição engata o leitor e produz o esquecimento da própria morte, numa banalização da morte que nos obriga a normalizar a morte e compreender que haverá realmente um final. A morte. Não nos iludamos. O texto, como a vida, também acaba (este ainda não). A repetição também convoca ideias diversas acerca da mesma palavra. Se não formos máquinas de repetição, mas realmente humanos, a mesa onde tomamos café diariamente pode ganhar perspectivas únicas, a cada manhã. Nós somos e não somos o mesmo a cada leitura. Heráclito entra aqui bem: nenhum homem pode banhar-se duas vezes no mesmo rio… A morte pode ser e será várias coisas a cada momento. Estúpida, curiosa, aleatória, expectável, inesperada, inexplicável, incompreensível, inaceitável quase sempre. Por mais curvas que atravessemos, ela estará sempre aí porque faz parte da vida. E da Guerra, esse princípio do Fim.
A Guerra é, tal qual a morte, inevitável e está aí outra vez, como sempre esteve. Dresden, Hiroshima, Vietname, qual fim da História? Iraque, Afeganistão, Somália, Palestina e Israel sempre aí, Etiópia, Iémen, Haiti, Síria, (e para alguns apenas esta) Ucrânia. E pensamos: quando chegará a nossa vez de encontrar o fantasma da morte e da Guerra? Nunca estive na Guerra, nem estarei (antes morto a tiro), mas alucinações e miragens parecem-me possibilidades totalmente verosímeis.
A Guerra deve ser a maior inimiga da complexidade, da argumentação serena. Imaginar o diálogo entre soldados oponentes num teatro de Guerra, em plena batalha:
– Primeiro senta-te, por favor. Já pensaste no que a história demonstra acerca do nosso património cultural comum? Os nossos países têm mais semelhanças que qualquer outro povo distante que seja nosso aliado.
Somos todos pela paz. Quem tem coragem de dizer que é a favor da Guerra? (tal como falta coragem para dizer, Sou racista, e no entanto) Quem poderão ser “os aficionados da Guerra”? Ninguém quer a Guerra. Nem os senhores da Guerra o podem admitir em paz. Mas dirão: quem garante a paz onde não há pão, saúde e habitação? A Guerra existe e não é feita por facas de papel. Os milhões de corpos estão mesmo a ser empilhados. Não é um AVC, um cancro, uma morte natural. É uma bomba, uma bala e um estilhaço de metal que perfura a pele dos avôs que ontem discutiam o fora-de-jogo do seu clube.
A distância da vida quotidiana aproxima-nos do cheiro da morte. Do outro e da nossa. Perguntamos à roleta russa (impossível não visualizar a tal cena de Deer Hunter): será a próxima? Nesse momento, restam as palavras. A palavra como um embrulho para a esperança enevoada. Na Guerra escrevem-se cartas no papel, na memória, no silêncio desenhado dentro dos olhos de vidro das crianças que envelhecem apesar da armadura, do capacete, da espingarda e da insígnia. A ingenuidade é a primeira vítima da Guerra.
E há ainda quem não seja empilhado. Quem sobreviva à putrefação da Guerra e volte ao passeio de domingo com alguma coisinha no bolso. Algo que brilhe. Outros voltam e fazem um livros, filmes, músicas anti-guerra. Nós, filhos da paz, o mínimo que devemos fazer é ler, ver e ouvir.
E tentar perceber que o som de um tiro ao longe é como uma chapada nos lábios frios do soldado quieto, uma lembrança de onde se está, para a concentração não adormecer. Senão já sabes: morres. Sacode a moleza! As palavras servem pouco na Guerra. Aqui apenas se ouvem as palavras secas saídas das vozes das espingardas.
A Guerra tem que ser cumprida por crianças irresponsáveis. Aquilo é um corpo inimigo para abater. Pum. E lá vão eles. Depois mata-se porque se derrubou alguém que estava do nosso lado. E depois mata-se. E daí em diante. Na Guerra não há amizade, só vingança.
E mais tarde, a questão: e agora como acabamos com isto?
Na Guerra, como no desporto e na vida, há quem prefira morrer a perder. Uns enforcam-se antes sequer de ter a possibilidade de perder tudo. São escolhas.
Na Guerra primeiro cresce o ódio e o barulho, e depois da morte e do choque, queda-se o silêncio do pó.
A morte não se repete, a Guerra não se repete. Mas ambas vão acontecer. Já sabemos como tudo isto acaba, tal como no livro, não é? É a vida?
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