Escritor, argumentista e realizador, Possidónio Cachapa nasceu e cresceu em Évora, antes de partir para os Açores aos 15 anos. É autor de vários romances, entre os quais se contam Nylon da Minha Aldeia, adaptado ao cinema, Viagem ao Coração dos Pássaros ou O Mundo Branco do Rapaz-coelho. Eu Sou a Árvore, que marcou o seu regresso ao romance depois de nove anos sem publicar, e O Mar por Cima, estão igualmente publicados pela Companhia das Letras, chancela do grupo editorial Penguin Random House, que reedita agora o seu romance de estreia, Materna Doçura.
Não tememos afirmar que Materna Doçura, publicado originalmente em 1998, é um romance tão incomum quanto o nome do seu autor. Com mais de 300 páginas e dividido em três partes, não é um livro denso, no sentido de exigir sacrifício para a sua leitura, apesar de magistralmente escrito. Bem pelo contrário, o autor agarra-nos nas suas primeiras linhas, desde logo com a bizarra expressão “Pornografia Maternal”, recém-descoberta vocação do protagonista Sacha, e a sua descrição da mesma, aguçando-nos a curiosidade para a descoberta do que poderá ser “a mais natural das coisas proibidas”.
No entanto, e apesar das aparências, Materna Doçura não é um livro sobre incesto. Está bem longe e para além disso. Correndo o risco de ser simplista, será, sobretudo, um livro sobre os vazios que deixam aqueles que partem primeiro. Visto por alguns críticos como “romance de regeneração” ou de “redenção pelo amor”, é, segundo o próprio autor, a resposta à pergunta que viu um dia espelhada nos olhos de um amigo: “ ‘O que é o amor maternal?’. Que coisa é esta que liga dois seres desde que um deles nasce até que ambos desaparecem? Todos os outros afetos podem sucumbir, menos este. Os amantes desaparecem, os amigos transformam-se em desconhecidos, os primos engordam e já não se lembram de que um dia subimos com eles um monte com a emoção de quem escala uma montanha. Mas entre mãe e filho, ou entre pai e filha ou filho, o amor não deixa nunca de existir: Porquê?”.
Possidónio Cachapa tentou, então, encontrar respostas, e encontrou “apenas algumas”, na insólita história de Sacha, “o rapaz-com-um-buraco-no-peito”, “o- dos-olhos-azuis”, um filho obcecado pela mãe. E é desta forma que o protagonista nos é apresentado pelo narrador omnisciente, logo no primeiro parágrafo do livro: “Sacha G. não chegou a rei da pornografia aos vinte anos, como se costuma dizer. Pelo contrário: tinha mais de trinta, um casamento arruinado e muitas dívidas, quando teve a ideia de se dedicar à Pornografia Maternal […] Logo, quando lhe apareceu esta ideia de filmar homens, a rodar nus, à volta do corpo lânguido e acolhedor das mães, não viu nisso nada de estranho. Afinal fora o que ele fizera nos trinta anos da sua existência: girar à volta do seio materno. Pareceu-lhe ser apenas a consagração do mais interdito dos interditos ou, se preferirem, a mais natural das coisas proibidas”.
Materna Doçura é um romance povoado de personagens diversas, mas com o traço comum da marginalidade. Antes de chegar à Pornografia Maternal, Sacha cruza-se com tais personagens, os “deserdados do mundo”: prostitutas, toxicodependentes, sem-abrigo, meninos raptados por “serial killers”, loucos, solitários… Todos orfãos como ele, que perdeu uma mãe amada. Num bordel de Lisboa, o “Tulipa Negra”, ou nos corredores do metro de Paris, nas sargetas, acontece “a materna doçura”, o afecto arrancado à melancolia e à dor. E acontece, em especial, entre Sacha e o Professor, personagem que, apesar de ter mãe viva, se viu obrigada a adoptar uma outra mãe, que lhe tocasse e a quem pudesse tocar, a criada preta Muganga, que viera de África para ser criada de servir e acaba no bordel, expulsa num acesso de raiva burguesa.
Não sabemos bem em que tempo decorre a acção (Anos 60, 70, 80?. Nenhum? Todos eles num só?), e o espaço confunde-se entre lugares reais (Lisboa, Paris) e outros reconhecíveis mas “coloridos” pelo autor: o “Tulipa Negra”, o “Hotel Almatroz”, as “Falésias do Mar”, a casa em Cinco-Rios.
A beleza do livro é por vezes violenta, mas o risco do pornográfico é contornado pela integridade e ternura da escrita.
O filme realizado por Sacha e que inicia o estilo “Pornografia Maternal”, acaba por conquistar o Director do Festival de Veneza, a ponto de Sacha ser convidado para a competição, avalizando a opinião do produtor Marco Paulo que, com desprezo, durante a rodagem afirmava que o que estavam a fazer era “arte”, não pornografia. O filme passa a ser o símbolo de que a beleza pode nascer em qualquer parte, como as ervas daninhas, como o amor entre os seus protagonistas, Natasha e Dom Martinho, uma mãe que perdeu um filho e um filho que procura uma mãe.
No funeral do Professor encontram-se todos. As prostitutas do “Tulipa Negra” choram com Sacha, como o Professor chorara a morte de Muganga. O bordel, sabe-o o Professor e sabê-lo-á Sacha, é como o seu filme porno subvertido pelo amor: “onde crescem lírios no meio do lixo”.
Aprendem ainda, e nós com eles, que a doçura materna não precisa de gestação, nem de parto. A grande mãe africana e o irredutível solteirão amam de forma incondicional os filhos que não tiveram. Ao ser pai, Sacha encontrará, finalmente, a paz que tanto buscou, deixando ir, descansada, a sombra da mãe que o havia acompanhado toda a vida.
Escrito com irreverência e imaginação, Materna Doçura conduz-nos da primeira à última página com uma avidez feita de riso, emoção e drama. Uma leitura imprescindível.
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