“We’re on a road to nowhere”, canta David Byrne e talvez nenhuma outra música presente no hipnotizante MDLSX seja mais acertada para descrever a viagem entre sexos e géneros que Silvia Calderoni faz em palco, num “espetáculo-monstro” de Enrico Casagrande e Daniela Nicolò da companhia italiana MOTUS, ancorada em textos de Paul B. Preciado (aqui lido) e Middlesex de Jeffery Eugenides (talvez o romance intersexual por excelência), conjugados com a música de Placebo (este palco foi o espaço para o qual a Nancy Boy foi escrita), The Knife, Yeah Yeah Yeahs e outros obrigatórios em qualquer playlist adolescente, talvez até a de Calderoni, dado o cariz autobiográfico do espectáculo.
A performance começa com um vídeo de Silvia ainda criança a cantar “C’era un ragazzo che come me amava I Beatles e i Rolling Stones”, no que parece ser um concurso de talentos. É ténue a linha entre o que é seu e o que pertence ao texto de Eugenides, sendo descurada a articulação entre realidade e ficção em favor de um espetáculo fluído conduzido pelo corpo incansável da artista, que veste e despe roupas, e se torna homem, mulher e nenhum destes (lembrando Orlando, de Virginia Woolf), põe perucas e barbas, dança entusiasticamente como se ninguém estivesse a ver, numa celebração da fluidez de género e do seu próprio corpo, que, na adolescência, lhe era tão estranho.
Enquanto vídeos caseiros da sua infância são projetados, Calderoni aponta uma câmara ao seu corpo, numa sobreposição auto-reflexiva entre passado e presente, que desenha um retrato íntimo da artista enquanto abre ao público o seu álbum de família.
Há momentos de energia punk, onde o corpo é levado ao cansaço numa repetição de movimentos ao som de música; noutros, somos recordados dos espaços da adolescência, como os balneários, temidos pela confrontação com os corpos de outros e outras, o medo da diferença a pedir que o corpo seja escondido. Calderoni descreve as mudanças do corpo enquanto adolescente (e a lentidão destas) e a pressa em ver o corpo a tornar-se mais feminino. Em palco, estas mudanças são simplificadas com o recurso a perucas, que passam a ser ricos tufos de pêlos nas axilas e nas virilhas, e ao uniforme de ginástica, transformado em dois seios generosos. Um simulacro da feminilidade e do corpo na puberdade e uma paródia deste e das expectativas de género.
A melancólica “Honey Bunny” de Vincent Gallo proporciona um dos únicos momentos em que o ritmo desacelera, para um monólogo introspetivo sobre a descoberta do corpo e do sexo, enquanto imagens de flores que abrem e fecham são projetadas. O tom estende-se à cena mais intensa da performance: Calderoni a servir de ventríloquo ao texto de Eugenides no momento em que a Cal do livro procura o significado da palavra “hermafrodita”, chegando ao sinónimo muito afastado “monstro”. Segue-se uma reflexão muito pertinente sobre os corpos ditos normais e todos os outros, assim como uma crítica à medicina e aos discursos médicos que diagnosticam sexualidades e corrigem corpos alternativos à matriz normativa, particularmente os de pessoas intersexuais, mutilados e alterados de forma a corresponder a códigos de normalização das suas formas e medidas, desprezando a sua funcionalidade ou as implicações destas mudanças impostas na vida sexual e na construção da identidade de género.
A entrega de Calderoni é total, resultando numa performance honesta e transparente, sem artifícios até mesmo nos parcos recursos de que usa em palco: algumas luzes, roupa, perucas, uma câmara-espelho e o misturador que lhe permite ir desenhando a paisagem sonora sobre a qual projeta a sua história. A entrega é tal que a performer que chega a assinar, ainda que apenas verbalmente, o Manifesto Contra-Sexual de Paul B. Preciado (recensão aqui) em palco, onde declara a renúncia a qualquer categoria de género ou matriz heteronormativa que condicione a vivência do corpo sexual.
Num momento retirado diretamente de Middlesex, a viagem é equacionada com a transição do corpo: no livro, a protagonista Cal (a semelhança dos nomes parece ter sido combinada entre escritor e performer) descobre que, apesar de criada como rapariga, é na verdade intersexual. Depois de confrontada com um corpo que é, a nível hormonal, masculino, sai de casa e parte sem destino à boleia de estranhos, assumindo uma identidade masculina (ou performativamente masculina) ao cortar o cabelo e ao vestir roupas de homem. Em MDLSX, Cal(deroni) veste também um fato, esconde o cabelo e passeia-se em cima de uma mala, metáfora direta da pesada bagagem que as identidades sexuais acarretam. No entanto, se Middlesex oferece em certos momentos vislumbres de uma matriz heteronormativa e até da prevalência de uma identidade sexual binária, MDLSX é uma celebração do corpo que resiste a um mapeamento, nómada entre esferas sexuais, sem a necessidade de identificação com qualquer categoria. Face ao corpo nu de Calderoni, também o público é confrontado com a plasticidade do género e identidade sexual desta figura encantatória quase mítica, algo reforçado quando veste uma cauda de sereia e relata um episódio do Middlesex em que Cal trabalha num peep show.
“Please, please, please, let me get what I want” de The Smiths, que a adolescente dos vídeos caseiros pede que toque no seu funeral, encerra o espetáculo, enquanto Calderoni, visivelmente emocionada, agradece ao público que se levanta da cadeira.
MDLSX não é um funeral mas antes um adeus ao género, às categorias e aos binarismos, hino elegíaco mas também de celebração de uma forma de fazer género(s), ao mesmo tempo que convoca para o palco outros textos para além da escrita do corpo.
Por defeito profissional, a Ana Carvalho escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.
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