Reinterpretação aberta, com uma abordagem dinâmica e arrojada da Medeia que Jean Anouilh escreveu em 1946 e mostrou ao Mundo em 1953, este espectáculo da companhia Público Reservado recupera uma das personagens mais marcantes da história da dramaturgia, para a trazer, mais despida e exposta do que nunca, ao alcance do espectador. Revela a mulher poderosa, feiticeira, vingativa, imbatível na argumentação, mas desconcertante na sua fragilidade, presa pelo matrimónio e pela sua condição, símbolo maior do eterno feminino que tarda em triunfar, face ao óbice/contraponto Jasão, paixão, protagonista e fundamento último da sua queda na negritude do ódio e da (auto)destruição.
Jasão – Pobre Medeia…
Medeia põe-se diante dele como uma fúria.
Proibo-te de teres piedade!
Jasão – E o desprezo, permites-mo? Pobre Medeia cheia de si! Pobre Medeia a quem o mundo não devolve nada mais senão Medeia. Podes proibir de ter piedade. Ninguém terá nunca piedade de ti. Nem eu, e se eu ouvisse hoje a tua história, não poderia ter pena. O homem Jasão julga-te com os outros homens. E o teu caso está arrumado para sempre. Medeia! É um belo nome, apesar de tudo, não terá sido só teu, neste mundo. Orgulhosa! Leva contigo essa para o cantinho sombrio onde guardas as tuas alegrias: não haverá mais Medeias, nunca mais, sobre esta terra. As mães nunca mais porão este nome às filhas. Ficarás só, até ao fim dos tempos, como neste minuto.
A história original, tragédia de Eurípides, resume-se em poucas palavras, algo que Aristófanes de Bizâncio fez na perfeição: “Medeia, devido ao seu ódio por Jasão, pelo facto de aquele ter desposado a filha de Creonte, matou Glauce e Creonte e os próprios filhos, e separou-se de Jasão para ir viver com Egeu”. Traída, exilada, encontramo-la nesta reencarnação a coabitar com a Ama numa roulotte, verdadeira mãe e confidente, que escolhe viver e acaba por deixá-la só, com os seus delírios.
A encenação contém pequenos momentos de grande beleza, inesperados jogos de intensidade contida e silêncio vibrante, graças a um cuidado trabalho de desenho de luz e de vídeo (Nuno Tomás e Luís Porto, respectivamente), conferindo ao todo dramático uma amplitude inesperada e impactante, sem que se sobreponham (antes complementem) ao cerne da acção.
Confrontada com o fim do amor de que tarda em livrar-se, esta Medeia responde com despeito e astúcia ante a visita do rei Creonte, antecipando-se na inflexão das suas palavras os piores indícios. O trabalho de composição de Ana Paiva, desde as primeiras falas, é de superior qualidade. Maleável e intensa, impõe-se e subtrai-se em cada cena, com a leve volubilidade que só os intérpretes superiores exibem sem dificuldade ou artifícios.
Creonte – Vim também para te dizer isso. Celebram-se esta noite as núpcias da minha filha. Jasão deve desposá-la amanhã.
Medeia – Longa vida, longa felicidade para ambos!
Creonte – Eles passarão bem sem os teus votos.
Medeia – Porquê recusá-los, Creonte? Convida-me também para a boda. Apresenta-me à tua filha. Posso ser-lhe útil, sabes? Há dez anos que sou a mulher de Jasão, tenho muito que lhe ensinar, a ela, que não o conhece senão há dez dias.
O momento-chave da peça é o confronto visceral entre Jasão e Medeia, um combate pleno de fisicalidade e angústia, de dor mútua e repartida, de palavras e contradições irresolúveis e, por isso, insignificantes perante o Amor feito cinza, diante do fogo fátuo que ainda o dizima. Na encenação de Renata Portas, a cada clímax de agressividade na discussão sobrepõe-se a música ao vivo do quarteto Bernardo Lima (baixo), Pedro Sousa (guitarra), Rui Manuel Amaral (bateria) e Pedro Manana (guitarra), que debitam rock de excelente colheita, entre o stoner, o improviso e a pura descarga de energia.
Da soma de todas estas partes, resulta um trabalho surpreendente e cativante, pela frescura na convocação de um grande texto e pelas escolhas em termos de encenação e dramaturgia, responsabilidade de Renata Portas, que contribuem para transformar uma peça à partida datada, num espectáculo fascinante e capaz de desafiar pré-concepções do público mais desprevenido. Um triunfo e uma demonstração cabal de que tudo é possível em teatro, desde que o bom gosto e a coerência sejam pontos cardeais do espectáculo.
Foto © António Alves
Excertos: “Medeia” ,de Jean Anouilh, versão cénica de Isabel Morujão, encenação de Renata Portas.
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