Meio Homem Metade Baleia, de José Gardeazabal, é um romance que incorpora uma narrativa alegórica, nutrida de uma linguagem múltipla que ultrapassa a consciencialização ou raciocínio lógico. Simbolicamente forte, a prosa é a única fonte capaz de romper barreiras, já que a missão de levar água aos menos desfavorecidos ou desprovidos de uma democrática organização societal, nunca chegou a concretizar-se.
Da beleza abstrata do humanismo, à ironização da solidariedade do Ocidente, que entre muros constrói uma transponível ambição entre realização pessoal e altruísmo, desvincula-se a ideia de salvação quando realidades não mudam, ou não se tornam numa só.
Jonas, funcionário de uma organização internacional é acompanhado pela filha Aliss, adolescente que se torna mulher durante a viagem, e por Servantes, condutor, com quem dialoga frequentemente, embora embriagado por ideias do século passado seja. Ao longo do muro e da temporalidade da ação, levar água aos carenciados significa passar por lugares descalços de ambiguidades. Do possível Médio Oriente partem questões, nunca se pondo em causa paradigmas, já que há um conforto em ser-se turista de uma Europa “feliz”. As diferenças existem, da indagação entre significados de civilização, lugar, fronteiras, preconizam-se reflexões sobre amores passados, sobre sexo com sentido de solidariedade, para chegar a um conforto perdido no meio de acontecimentos rotineiros.
A missão de Jonas seria o culminar de uma sociedade liberta, exposta à cultura do materialismo, consumada por guerras, ideologias políticas, corroborada num único muro, maciço e nunca invisível, içado sobre os escombros de uma divisão artificial de um globo que gira em torno do mesmo astro para todos.
Um livro de onde a caridade salta da estante do pó. A organização unida por si, antónima de algum nome conhecido, familiariza nos corações o desejo de alimento mundano, internacionalista, onde o voluntariado evolui de fonte complacente a instrumental, como se a humanização fosse mecânica. A promoção do bem em moldes rupestres. Porque é antiga e atual, não sai de moda.
Meio Homem Metade Baleia acaricia o real, baralhando os confusos por si só, porque a tradução vem da reflexão, de matérias profundas, onde o subtil não chega. Matérias sensíveis retratadas sem escrúpulos, porque suscetibilidades em tom emocional não aproximariam o leitor a espaços literários que incrementam a dor ao percecionar realidades tão antagónicas em comodidade.
Reflexos paralelos entre Jonas, Servantes e Aliss fazem-se sentir. Já que o mundo não é só o mundo e para Aliss o conformismo já não parece certo. Personagens à parte, José Gardeazabal, traz ao século vinte e um, uma possível continuação da História do Século Vinte, seu livro de 2016. Marcado por evidências claras de ruturas concecionais, traz em molde de abismo civilizacional uma sátira constante à defetibilidade da existência, esboçando a era do capitalismo a par de um pessimismo antropológico, quase distópico.
Entre histórias e a globalização, entre parábolas e urgências cerebrais, Meio Homem Metade Baleia é tudo menos vertiginoso. É o dicionário basilar de toda a Humanidade ou o que resta dela. Já que o Homem já se figura pela metade.
Uma Ode à “Teologia do muro” que deve ser obrigatória.
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