Não deveria causar-nos qualquer estranheza que um estrangeiro como Ron B. Thomson se dedique a estudar a História de Portugal, como fez neste Miguelistas e Liberais. Não é de agora que eminentes lusistas não portugueses deram importantes contributos para a historiografia lusa. Assim, o nome de Thomson junta-se ao de ilustres predecessores, como Edgar Prestage, Aubrey Bell, Elaine Sanceau, ou Charles Boxer. Tal como estes, Ron B. Thomson tem uma ligação muito mais do que teórica com Portugal, uma vez que reside sazonalmente no país. Especialista em História Medieval, Thomson saiu bastante do seu habitual campo de acção e, na verdade, escapou à tendência dominante dos lusistas mais renomados que tenderam – compreensivelmente, por certo –, na sua maioria, a concentrar os seus esforços no século XVI. Thomson, pelo contrário, optou por uma época, porventura, menos explorada por historiadores de outras paragens: a guerra civil em tempos de oposição entre liberalismo e absolutismo. É mais que provável que – à semelhança do que sucedeu com os historiadores de outros países que, anteriormente, se dedicaram ao estudo do passado português – Thomson tenha beneficiado do seu contacto in loco, e bem mais do que episódico, com o território nacional. Algo que implica, como é natural, uma proximidade facilitada com documentos, referências e até locais que determinam uma época e um conjunto de fenómenos históricos que conhece bem e em cuja História se concentrou com enorme acuidade e compenetração.
O período histórico eleito por Ron B. Thomson, se poderá não conter os ingredientes de um chamariz como a época da Expansão e dos Descobrimentos (passe o provável anacronismo, ou o desrespeito por certo casus belli), constitui um momento sobremaneira importante para ulteriores desenvolvimentos históricos e políticos. O que estava em causa, com a morte de D. João VI eram, muito simplisticamente, duas ideias de monarquia, duas noções distintas de poder e da sua organização. Um «prolongamento» do Antigo Regime, tradicional, apoiado nas estruturas seculares da Igreja, da hegemonia da nobreza de casta; outro que pretendia «renovar», ou alterar significativamente essas estruturas, introduzindo nelas determinados vectores até então ainda por definir, ou estabilizar, na sua concepção. A inspiração «histórica» desta última facção seria, como se perceberá, a Revolução Francesa, ao passo que os demais contendores defenderiam a manutenção das hierarquias e sistemas que o passado mais distante tinha consagrado. Por outro lado, o livro de Thomson define, desde o seu subtítulo, aliás – «Évora Monte, o Fim da Guerra dos Dois Irmãos e o Fracasso do Liberalismo em Portugal» –, uma intenção programática e teórica: a defesa de que o liberalismo, ou não chegou a existir no país, ou falhou como projecto político saído das Guerras Liberais, que opuseram os partidários de D. Pedro e de D. Miguel (ou seja, do liberalismo e do absolutismo). Segundo o historiador, o culminar de todo o conflito – a Concessão de Évora Monte – ao exilar o «Usurpador» D. Miguel, dissolvendo o exército miguelista, e pondo fim ao conflito armado, «deixou por resolver as divisões de base no país».
Antes de começar a definir o quadro que recebeu os acontecimentos das Guerras Liberais, o autor procede (e bem) a um prelúdio que faz recuar o tempo até à Revolução Americana, como espécie de preparação histórica dos acontecimentos que, a partir de Paris, mudariam o rumo da História europeia. E é claro que, na sequência da Revolução Francesa, com a ascensão de Napoleão, viriam as Invasões Francesas de Portugal que, por seu turno, viriam a ter um impacto decisivo no rumo dos acontecimentos no país. De forma concisa mas decisiva, Thomson historia, então, os acontecimentos que dominaram as Invasões, a sucessão de factos que levaram à subida ao trono de D. João VI e, com o fim do seu reinado, a Guerra dos Dois Irmãos. Note-se que, no momento em que Thomson dedica um capítulo autónomo ao arranque do conflito, mais de um terço do livro já está para trás, o que significa que um conjunto complexo de fenómenos históricos, sociais e políticos é amplamente contextualizado e explanado antes de se entrar no núcleo do «enredo». São uma constante os quadros, documentos e inserções que, sem terem, como é óbvio, esse propósito, arejam o texto, tornando-o bem mais respirável. Sobretudo, lançam permanentes pistas para uma compreensão mais exacta e multímoda de acontecimentos em que é impossível não se cruzarem planos aparentemente tão díspares e isolados, como o crescimento da população de Portugal Continental, entre os anos de 1801 e de 1850, a composição das «Cortes Geraes e Extraordinarias» de 1820, por profissões, os números da inflação ou a descendência de D. Pedro IV (ex-D. Pedro I do Brasil), repartida por legítima e variamente ilegítima.
O centro da argumentação do autor localiza-se, como se disse, na defesa de que o liberalismo foi um projecto fracassado e que a revolução não foi exactamente liberal. Não se trata de uma questão de semântica, nem de léxico. O que está em apreço é que as transformações que marcaram o país naquelas primeiras décadas Oitocentos não tiveram, segundo o historiador, matriz essencialmente liberal. Desde logo pela flutuação das adesões absolutistas e liberais, que Thomson descreve com algum pormenor: partidários de uma causa que passaram para outra, ou defensores de uma cor política que apoiariam a contrária, na verdade. Resistamos ao relativismo histórico, e não se façam arriscadas analogias com o século presente… Posteriormente, o autor pretende definir os limites e as fronteiras de noções como democracia, liberalismo, divisão de poderes, para chegar à sua tese, com a qual pretende questionar a filiação liberalista deste processo histórico, social e político. Por fim, o autor aponta o «facciosismo» (p.212) dos detentores do poder e dos grandes decisores, como impeditivo do liberalismo, a que se alia, segundo o autor, a «fragmentação» que viria mesmo a manter e a prolongar a incapacidade e inviabilidade de um liberalismo português, mesmo quando – já na segunda metade do século XIX – estas questões já faziam parte do passado recente, vigorava outra ordem política, e num quadro distinto: grosso modo, o período da Regeneração.
O estilo expositivo do historiador é elegante (mérito que deverá, por certo, ser repartido com a tradução de Miguel de Castro Henriques) e consegue ser informativo sem deixar de ser directo e harmonioso.
«A nobreza também estava dividida. Era composta pelas velhas famílias com grandes vínculos e propriedades (indivisíveis) como por uma nova nobreza baseada no serviço ao governo, êxito comercial e novos investimentos em terra. Parte da nobreza que partira para o Brasil em 1807 não regressou em 181, nem mesmo mais tarde, tendo preferido consolidar e desenvolver as suas novas posições no Brasil, ao mesmo tempo que desfrutava dos rendimentos dos seus bens em Portugal.» (p.100)
A organização do livro favorece a coordenação de períodos históricos distintos e a multiplicidade das informações disponibilizadas, ainda que se possa lamentar que a sequência final não tivesse desenvolvido e aprofundado um pouco mais a questão (de grande importância para o edifício do livro) da falência do liberalismo em Portugal no contexto das Guerras Liberais e do seu desfecho.
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