home Antologia, LITERATURA Mitologia Nórdica – Neil Gaiman (Presença, 2017)

Mitologia Nórdica – Neil Gaiman (Presença, 2017)

Ao contrário da tradicional bibliografia de referência, Mitologia Nórdica, de Neil Gaiman, não é uma obra de consulta, mas um livro de leitura. Quase sempre empolgante, em compasso praticamente constante, o livro de Gaiman opta pela via da narrativa, em vez de escolher, por hipótese, espraiar-se (ou sintetizar-se) pelos verbetes de um dicionário, em tentativa enciclopédica, ou por artigos mais contidos de uma hipotética História da Mitologia Nórdica. Na verdade, depois de uma zona introdutória, que abrange as duas primeiras secções do livro, cada capítulo constituirá uma narrativa – como um conto – sobre episódios particularmente relevantes da gesta divina, façanhas que ajudam a compor uma apresentação mais completa deste conturbado panteão, que se divide por distintas «zonas de influência» de cada grupo de deuses. Estes são figuras complexas, cheios de altos e, sobretudo, baixos, com um código de conduta fundamentalmente bélico. É sintomático que a distinção, neste sistema mitológico, não se faça entre mortos virtuosos e ímpios, mas entre os que morrem honradamente, em batalha – aos quais está destinado a glória de Valhala –, e os «que morrem de formas desonrosas: de doença ou de idade, de doença ou de parto» (p.82) – condenados a Helheim, «o reino dos mortos desonrosos, que não morreram nobremente em batalha» (p.239), governado por Hel, uma filha do deus Loki. Seres de uma violência sempre pronta a estalar, estes, movidos por ambições nada piedosas, e com um sistema de valores marcadamente alheio, quer à moralidade judaico-cristã, quer mesmo aos parâmetros éticos da tradição greco-romana.

É inevitável encontrar pontos em comum com qualquer exploração literária do tema dos deuses. Balder, segundo filho de Odin, era imune a todos os ataques, menos ao contacto do insignificante visco-branco, o qual, como é óbvio, será a causa da sua morte – como Aquiles e o seu calcanhar vulnerável. No entanto, esta mitologia apresenta especificidades muito nítidas. Nascida de povos guerreiros e habituados à austeridade dos climas, das paisagens e dos elementos, esta mitologia incorpora e hiperboliza essas condicionantes. Gigantes do gelo, paisagens espectrais, distâncias incalculáveis, avassaladoras proezas físicas, traições e mortes, trapaças da mais variada casta, um sentido de humor tortuoso e por vezes brutal – são componentes definidoras desta mitologia. Midgard, «o jardim do meio» (p.241), foi edificado pelos deuses Odin, Vili e Ve no interior das muralhas que construíram com as pestanas do gigante Ymir. Esta reciclagem de partes do corpo reincidirá. No Ragnarok, o fim dos tempos – ou não bem, porque haverá sequência para esse aparatoso «fim dos tempos antigos» (p.230) –, o deus Loki navegará «sobre os mares inundados» (p.225), ao leme do Naglfar, um navio feito com as unhas dos mortos. E há ainda Kvasir, o deus da sabedoria, formado a partir da saliva misturada dos Aesir e dos Vanir – «Os Aesir eram os deuses belicosos das batalhas e das conquistas; os Vanir eram mais doces, eram irmãos e irmãs que tornavam os solos férteis e ajudavam as plantas a crescer, mas isso não os tornava menos poderosos.» (p.107) Por sua vez, o primeiro homem, Ask, e a sua companheira Embla foram criados por Odin, Vili e Ve a partir de um freixo.

Talvez compreensivelmente, as sequências dialogadas – «Que tipo de pessoa pensas tu que eu sou? – perguntou ela muito baixinho. – Achas que sou assim tão tola? Tão descartável? Achas que sou uma pessoa que poderia efectivamente casar com um ogre só para te safar de uma encrenca?» (p.97) – não conseguem alcançar a grandeza fortemente carregada dos momentos descritivos, ou da narrativa, propriamente dita. Nestes segmentos, a escrita de Gaiman guindam-se, muitas vezes, a alturas notáveis da expressão, com uma sumptuosidade que o autor consegue tornar tragável e francamente lisível. Isto sucede devido à dificuldade que existe em conciliar o «prosaísmo» da fala com a grandiosidade dos quadros iniciais: da criação, nomeadamente, o ponto máximo de todo o livro – «Antes do início não havia nada – não havia terra, não havia céu, não havia estrelas e não havia o firmamento: havia apenas o mundo da neblina, sem forma e sem formato, e o mundo do fogo, sempre a arder.» (p.25); «Não havia mar nem areia, não havia relva nem pedras, não havia solo, não havia árvores, não havia firmamento, não havia estrelas. Não havia mundo, não havia céu e não havia terra, naquela altura. A fenda não estava num sítio: era apenas um lugar vazio à espera de ser preenchido com vida e com existência.» (p.27) Não surpreendentemente, em povos que vivem rodeados de névoa, gelo e frio, são frequentes as imagens desse quadrante climático – «Onde o gelo e o fogo se encontram, o gelo derreteu e, nas águas derretidas, apareceu a vida: a imagem de uma pessoa maior do que os mundos, maior do que qualquer gigante que alguma vez existiu ou venha a existir» (p.26). Quando Odin, sob o disfarce de um viandante de nome Bolverkr, pretende galantear a gigante Gunnlod, descreve-a como «mais bela do que um glaciar e mais bela do que um campo de neve acabada de cair na alvorada» (p.122)

Certas coisas nunca mudam, e os mitos, por mais insólitos que sejam, contêm sempre qualquer vislumbre real. Até onde menos parece previsível encontrá-lo. Fjalar e Galar eram dois irmãos. Estes dois elfos negros mataram Kvasir, o deus da sabedoria, para, com o seu sangue, criarem o hidromel da poesia, «uma bebida que iria inebriar qualquer pessoa que a bebesse, mas também daria a qualquer pessoa que a provasse o dom da poesia e o dom da erudição» (p.110). Os perversos manos arrecadaram todo o estoque da cobiçada beberagem, porque só eles queriam o dom da poesia. Só eles deveriam ter essa prorrogativa – «Bebiam o hidromel da poesia todas as noites e declamavam belos e grandiosos versos um ao outro, criavam poderosas sagas acerca da morte de Gilling e da sua mulher [vítimas dos dois irmãos torcidos], que declamavam do telhado da sua fortaleza, até que, por fim, todas as noites adormeciam, perdendo os sentidos, e acordavam onde se tinham sentado ou caído na noite anterior.» (p.112)

O livro de Neil Gaiman é um reconto. Um reconto que se divide por várias narrativas sobre a génese, o apogeu e declínio dos deuses. Mitologia guerreira, marcada pela moralidade da batalha, o panteão nórdico alcança, na reescrita do autor inglês, momentos de uma precisão admirável – «Uma dor aguda preencheu a sua cabeça.» (p.51) –, mas também ascende a voos planos de enorme valia estética – «o sol está frio e distante, como o olho pálido de um cadáver» (p.193). Embora os diálogos algo desmereçam o panorama geral, este é solidamente apresentado e disposto de forma literariamente conseguida.

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