Quem visitar o Mosteiro de São Bento da Vitória até ao dia 25 deste mês,encontrará um salão repleto de fotografias a preto e branco, expostas em quadrado em redor do espaço, cujo elemento comum é uma rã. O formato retilíneo da exposição adequa-se ao trabalho discreto apresentado: uma rã colocada junto a vários objetos sem ligação entre si. Encostada a duas peças de dominó, ou a uma janela que dá para uma figura de porcelana de Cristo, ou uma pedra ou uma mão, ou até um objeto não identificável. Durante meia hora observamos, em círculos, a pequena rã, de cujo corpo já apenas só persistem as cores e formas da pele, único vestígio de vida de um animal a caminho da fossilização. A ideia nasceu precisamente numa viagem de bicicleta do húngaro Josef Nadj pela sua terra natal sérvia. Pelo caminho sucediam-se no chão os corpos de rãs esmagadas pelo tempo. Apanhou algumas e pensou naqueles organismos como vida. O que é que está ali e não se vê? Fazemos o mesmo com edifícios históricos, obras literárias, fotografias antigas. Fê-lo Aby Warburg, no seu Atlas que é inspiração assumida neste processo de reconstituição da memória cultural através das imagens. Que memória transportam estas rãs? É possível reconstitui-la através da sobreposição entre ela (outrora vida) e objetos inanimados relacionados com a biografia do próprio artista?
No meio do salão há uma caixa negra. Às 18h em ponto somos convidados a entrar nela. Quatro filas para apenas seis pessoas cada uma formam a audiência para um pequeno palco de teatro de marionetas. Em breve uma figura sem rosto iniciará a performance. Um trecho musical tétrico em constante repetição acompanha os vinte minutos de reconstituição de uma memória. O espetáculo consiste no processo de organização, seleção, disposição, feitura do conteúdo de uma fotografia. Apenas nos últimos segundos, após o flash apontado ao cenário preparado durante vinte minutos, ela se nos revela. Nadj expõe, assim, o resultado que vimos lá fora (o processo de seleção de objetos e cenários para o seu arquivo fotográfico), e o processo vivido por nós cá dentro enquanto observadores. A imagem original, tridimensional, em frente aos nossos corpos, difere do resultado fotográfico. A rã, já esquecida, faz questão de se impor. O que foi que cada espectador testemunhou afinal?
Mnémosyne é, desta forma, um espetáculo curioso. Expõe as fragilidades da experiência in loco, tão em voga, e da cultura obsessivamente testemunhal em que vivemos. Em nome da memória dispomo-nos a deixar registo de tudo o que nos atravessa o olhar. Nadj aponta o dedo a esse registo e identifica-o como memória. A rã, o resultado, é o que recordamos, mas não o que existiu. Ao sair da caixa negra, voltamos às fotografias e o resultado é diferente. Já não são os mesmos objetos. E assim Nadj concebe a memória como constante reprodução de processos temporários da sua construção.
Exposição fotográfica, espetáculo e instalação, a forma híbrida valeu-lhe a designação de Gesamtkunstwerk, obra de arte total. O termo é pomposo e veicula uma grandiosidade que nos parece contraproducente. Preferimos salientar que há vários tipos de rãs por aí. Olhemos com mais atenção mais para o chão que pisamos.
Por defeito profissional, Luís Pimenta Lopes escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.
Foto © Blandine Soulage
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