home Antologia, LITERATURA Isso Não Pode Acontecer Aqui – Sinclair Lewis (D. Quixote, 2017)

Isso Não Pode Acontecer Aqui – Sinclair Lewis (D. Quixote, 2017)

A história tem destas coisas. Se Donald Trump não tivesse chegado à Casa Branca, este livro manter-se-ia esquecido até que alguém minimamente parecido lá chegasse. Em 2016 chegou o pretexto para ele ser reeditado, e desde que isso aconteceu muitos destacam o perfil assustadoramente profético de It Can’t Happen Here (1935). Sinclair Lewis, primeiro norte-americano a receber o Nobel da Literatura, ainda antes da publicação deste livro, traz-nos a história de um excêntrico, Doremus Jessup, jornalista do fictício Daily Informer, e de como vê instaurar-se uma ditadura dirigida por um ditador bacoco na nação de George Washington e Abraham Lincoln.

A aura pessimista da obra funciona sobretudo pela sua verosimilhança. A fórmula especulativa “e se?”, combustível das grandes narrativas distópicas do século, não precisava em 1935 de matéria-prima muito elaborada, bastando estar atento à comunicação social e ao crescimento e popularidade do fascismo e do estalinismo. O ditador bacoco em questão é Buzz Windrip, racista, xenófobo, ignorante, um homem que quer retirar a América das mãos do Grande Capital e da elite intelectual, sem apresentar, como é de regra, quaisquer afiliações ideológicas coerentes: “Bebia Coca-Cola com os metodistas, cerveja com os luteranos, vinho branco da Califórnia com os comerciantes judeus da cidade e uísque de milho forte e descorado com todos eles”. Mais do que o oportunismo comparável ao de Trump, parece-nos importante salientar que “o que pode acontecer aqui” é uma expressão literal, se a lermos com tudo o que de tão completo nos apresenta este documento sobre o espírito do seu tempo, escrito in statu nascendi das maiores atrocidades políticas que o mundo conheceu no século passado. Hitler estava no seu apogeu, Estaline idem, as lutas ideológicas fervilhavam, mas eram as demagogias que triunfavam. Windrip tinha o seu próprio Mein Kampf, que “continha mais sugestões para reformar o mundo do que os três volumes de Karl Marx e todos os romances de H. G. Wells juntos”. Excertos deste Hora H – Para Além do Limite brindam-nos como introdução dos primeiros capítulos com frases cómicas, desaparecendo a partir de meio da obra, tal como as promessas feitas enquanto o regime prescinde do seu manual ideológico quando sabe que a violência dá menos trabalho: “Passou a ser mais fácil responder aos descontentes com uma bofetada de um Minute Man do que com as declarações repetitivas de Washington”. Os Minute Man, ou MM, os SS locais, “cavaleiros andantes que defendem os direitos dos Homens Esquecidos”, vão crescendo enquanto o desemprego desce. A violência do estado totalitário não floresceria sem a melhoria económica: “o desemprego tinha praticamente desaparecido. Quase todos os homens desempregados foram agrupados em enormes campos de trabalho às ordens dos oficiais dos MM”. Elementar.

O decalque com o regime nazi é evidente, e o livro ganha pelo cruzamento entre ficção e realidade, com visitas de estado de Göring à América, e colaboração entre senadores americanos e Estaline, que deseja “organizar” as populações do Tajiquistão a partir da “ampla experiência na Gleichschaltung do Mississipi”, o termo alemão para a sincronização imediata de todas as instituições alemãs com a ideologia nazi em 1933. Até os reais exilados são matéria de ficção: “Albert Einstein, exilado da Alemanha devido à sua indesculpável devoção pelas matemáticas, pela paz mundial e pelo violino, era agora exilado da América pelos mesmos crimes.”

Falta referir que Windrup chega ao poder derrotando F.D. Roosevelt, o verdadeiro, numas eleições com o apoio da Liga dos Homens Esquecidos, prometendo um New Deal de verdade, que consiste na oferta de cinco mil dólares a todos os americanos. Com as devidas (pequenas) diferenças conjeturais, onde é que já ouvimos isto? A ação decorre entre 1935, ano da chegada ao poder de Windrup, até 1939, quando a dança das cadeiras do poder demonstra a falta de conteúdo político daqueles que andam à volta de Buzz, e tudo se torna numa questão de “salve-se quem puder” enquanto o regime se auto-canibaliza e decide se é benéfico ou não invadir o México e quaisquer nações que se oponham à grande América. A sátira e a paródia predominam: “Karl podia demonstrar (…) que o problema com válvulas furadas, as pastagens ácidas para as vacas, o ensino de cálculo e todos os romances, era o de não se guiarem pelos escritos de Lenine”. Doremus, a partir de cuja consciência somos induzidos a seguir o enredo, observa como tudo acontece e como a liberdade, valor maior da América, lhe é retirada e o obriga a colaborar com o regime, porque não lhe sobra outra alternativa e “tem de sustentar mulher e filha”. Acaba por não conseguir continuar a escrever como o regime manda, e termina num campo de concentração, enquanto membro da célula de resistência NC (Novos Clandestinos), onde o próprio filho advogado o visita para tentar demove-lo das suas ideias. Afinal, como poderão dar-lhe o cargo de magistrado a que tanto almejava se o pai propaga ideias antiamericanas? Lembremo-nos que em 1935 Dachau era o expoente do sistema concentracionário alemão, ainda não havia Auschwitz, massacres no leste europeu e guetos na Polónia, mas as descrições do chicote dos MM a deixar as costas de Doremus em carne viva são bastante elucidativas daquilo que poderia acontecer aqui. Enclausurado junto com os ideólogos de café que não conseguiram evitar o triunfo do fascismo, debate pacientemente os cismas ideológicos que ainda hoje conhecemos bem: “eu sou um intelectual da classe média. Nunca me descreveria de forma tão imbecil, mas como vocês, os vermelhos, cunharam o termo, terei de aceitá-lo. Esta é a classe a que pertenço e só isso me interessa.” A insistência numa terceira via avant la lettre de Doremus é o ponto forte desta obra, pelo que denuncia de lucidez – a da literatura? – num mundo em que nenhuma ideologia é a pior ideologia:

“Foram pessoas como eu – cidadãos responsáveis que nos sentimos superiores porque éramos abastados e nos julgávamos educados – que provocámos a Guerra da Secessão, a Revolução Francesa e agora a ditadura fascista. Fui eu quem matou o rabino Verez. Fui eu quem perseguiu os judeus e os negros. Não posso culpar nenhum Aras Dilley, Shad Ledue ou Buzz Windrip, mas tão-somente a minha própria alma receosa e a minha mente adormecida. Oh, meu Deus, perdoa-me! Será já demasiado tarde?”

Sim, a Revolução Francesa surge numa linha que culmina nos totalitarismos dos anos 30: “Dizia-se que Swan [comissário distrital] tinha no seu avião uma escrivaninha que pertencera a Hitler e, antes dele, a Marat.” Polvilham os protagonistas da história neste livro, mas a sua relevância cabe-nos a nós aferir. Preferimos lembrar o tríptico liberté, égalité, fraternité e esquecer Robespierre. O que é que estamos a lembrar e a querer esquecer hoje em dia? No final, Doremus sobrevive, claro, e mantém a resistência na clandestinidade, sob uma nova identidade que combate a ditadura sem fim definido. E isto acontece porque é preciso alguém que fique para carregar a consciência pesada de, ciclicamente, termos de fazer um mea culpa pelo estado a que as coisas chegaram. Enquanto leitores, todos somos Doremus Jessup. E no mundo lá fora, que nome deixamos?

Por defeito profissional, Luis Pimenta Lopes escreve de acordo com o novo desacordo ortográfico.

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